O historiador detetive

O caso que descrevo é imaginário, mas bem poderia ser real. O ambiente é a sessão final de um julgamento por homicídio. O suposto assassino é acusado de matar um funcionário do alto escalão do governo federal, numa dessas tramas cinematográficas que aproximam crime e poder. O acusado seria o maior beneficiário dessa morte.

Para convencer a audiência da inocência de seu cliente, o defensor usa provas circunstanciais, mas também um argumento convincente: a única razão para a acusação é uma carta, na qual o suposto assassino teria relatado a um amigo vagos detalhes acerca de um crime não identificado.

A argumentação da defesa se baseia na impossibilidade de considerar alguém autor de um ato de tamanha seriedade com base apenas em um texto, cuja autenticidade evidentemente pode ser posta em questão. Sem provas conclusivas, o juiz manda arquivar o caso e ninguém é preso.

Suponhamos que, anos depois, um historiador se debruce sobre casos de assassinato ocorridos há décadas, com vistas a um estudo sobre criminalidade. Para empreendê-lo, ele busca compreender a estrutura judiciária da época, o impacto dessas decisões sobre a sociedade, a rede de relações pessoais dos envolvidos, os argumentos utilizados e aceitos pelos magistrados.

Um dos processos por ele analisados seria o descrito acima, também revisto pelo juiz. Para sua análise, ele é exemplar, pois envolve relações com os poderes executivo e judiciário. Seu estudo passa a ser simultaneamente uma análise da criminalidade e da argumentação jurídica. Afinal, para entender o arquivamento do caso, é preciso conhecer a jurisprudência e os costumes, saber o que é comum e o aceito como normal naquele período e local.

Ao final da pesquisa, nosso historiador escreve um texto que propõe uma interpretação inovadora em relação às idéias aceitas pela historiografia tradicional.

A coincidência não é casual: os dois estudiosos – o jurista e o historiador – escrevem textos para convencer um determinado público da veracidade de suas ideias. Os contextos são absolutamente diferentes, mas, no fundo, a questão que os une é a mesma que tirou o sono dos participantes do processo por ambos analisado: como saber quem diz a verdade? Como detectar a verdade em um texto?

Crime verídico
Essa pergunta é uma das que fica na mente de quem lê o recém-lançado O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e Justiça na São Paulo dos anos 30 (Companhia das Letras, 2009), de Boris Fausto. O crime analisado por ele aconteceu de verdade, em 1938, na capital paulista.

Quatro pessoas foram encontradas mortas em um sobrado no centro da cidade. A chacina chocou o então menino Boris Fausto, de apenas 8 anos de idade. À época, jornalistas, policiais e juristas, além do juiz e do júri, tentaram solucionar o crime, cada qual à sua maneira. Nada feito. O principal suspeito foi julgado e absolvido. O processo foi arquivado.

Mais de setenta anos depois, o autor de clássicos da historiografia brasileira como Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo e A Revolução de 30 resolveu reabrir o caso. Fausto releu notícias de jornais da época e revirou os quatro volumes que compunham o processo judicial para tentar recompor a narrativa do crime.

Embora o autor assuma o lado detetive que todo bom historiador guarda dentro de si, seu objetivo não seria levantar suspeitas sobre a identidade do assassino, até hoje desconhecida. Ele se propõe a desvendar os fios da história que levou à prisão um homem negro, acusado de assassinar um casal de chineses e dois de seus empregados, um lituano e um brasileiro.

Ao fazer isso, Boris Fausto aproveita para revisitar alguns de seus temas favoritos, como os anos 1930, imigração e criminalidade – sempre em São Paulo –, mas também outras de suas paixões menos conhecidas do grande público, como o futebol. O autor explora a possível identificação feita pelos habitantes da cidade entre Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, melhor jogador da Copa de 1938, e o suspeito Arias de Oliveira.

Mais do que a tênue relação entre a forma como os dois personagens visitaram as páginas dos jornais naquele ano, o livro deixa claro como, naquela época, o amor pelo futebol já era capaz de parar uma cidade de imigrantes como era a São Paulo de então. E de fazer com que todos esquecessem, por algumas semanas, o crime que tanto abalou a cidade.

Justiça nos anos 1930

Leônidas da Silva, conhecido pelo apelido “Diamante Negro” e famoso por popularizar a bicicleta no futebol, teve seu perfil associado ao de Arias de Oliveira, acusado de cometer o crime analisado no livro de Boris Fausto (foto: reprodução).

Ao explorar o processo de investigação e julgamento de Arias de Oliveira no crime do restaurante chinês, Boris Fausto faz uma cuidadosa análise dos fundamentos da Justiça no Brasil dos anos 1930, das concepções de direito então vigentes e da relação entre as ideias jurídicas e as práticas judiciárias.

Além disso – o que é fundamental para qualquer análise da Justiça –, o autor não deixa de prestar atenção nas pessoas que compunham o júri e nas suas próprias concepções sobre o comportamento criminoso. A partir daí, ele analisa o próprio andamento do processo, a influência da mídia (na época, os jornais) e a maneira como o julgamento foi conduzido.

Tudo isso estaria apenas no plano do pitoresco, não fosse o talento do historiador para usar esse longo processo criminal como uma porta de entrada para análises muito mais amplas. Fausto usa esse caso para discorrer sobre a criminalidade em São Paulo nos anos 1930, o funcionamento da Justiça e a discussão jurídica e psicológica sobre o comportamento humano em atos extremos, como é o crime.

É, assim, como bom exemplo de micro-história, que o livro é melhor lido. Não apenas por conta das relações entre macro e micro-história. Mas porque, ao analisar a sentença e se perguntar se ela seria diferente caso as vítimas fossem outras – membros de uma família tradicional, em vez de imigrantes, por exemplo –, Fausto se recusa a reforçar clichês sobre as relações entre criminalidade e racismo, sobre a parcialidade da Justiça, sobre a intromissão da mídia.

Ao concluir assim o livro – e mais não conto para não tirar do leitor o prazer de descobrir por si só o real desfecho da história –, Boris Fausto abre espaço para a reflexão sobre a imprevisibilidade e a incerteza que caracterizam o comportamento humano. Assim como a história.


Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
12/06/2009