O inimigo está à espreita

Com uma regularidade impressionante, as infecções hospitalares têm sido noticiadas pela imprensa e têm tornado os hospitais – locais que deveriam estar associados com a promoção e cuidados com a saúde – ambientes potencialmente perigosos para nosso bem-estar. A taxa de mortalidade por infecção hospitalar alcança níveis alarmantes em todo o mundo. Só no Brasil, o problema está por trás de 45 mil óbitos anuais em média em cerca de doze milhões de internações. De acordo com o Colégio Brasileiro de Cirurgiões, o custo desses índices trágicos chega a cerca de R$ 10 bilhões anuais.

A infecção hospitalar ou nosocomial (do grego nosos = doença, komeo = cuidar) é provavelmente tão antiga quanto os próprios hospitais. Os primeiros relatos desse fenômeno, porém, só foram registrados na Áustria durante o início no século 19, atingindo mulheres após o parto. Pesquisas mostraram que essa contaminação ocorria devido à falta de assepsia das mãos durante a realização dos partos.

O biólogo escocês Alexander Fleming ganhou o o Nobel de Medicina de 1945 por descobrir a atividade antibacteriana da penicilina (foto: St. Mary’s Medical School Hospital, London).

A contaminação por germes patogênicos nos centros cirúrgicos era algo comum, apesar das pesquisas realizadas por um cirurgião inglês chamado Joseph Lister (1827-1912), que implantou os princípios de assepsia pela adoção de procedimentos simples como o uso de fenol para desinfecção das mãos ou a aplicação de pomadas de ácido fênico nas feridas.

Por algum tempo se acreditou que a solução para esse problema residia nos antibióticos. Os primeiros registros do uso desses compostos químicos remontam a pelo menos 2.500 anos, pelos chineses (sempre eles!) e egípcios. Mais tarde, eles foram redescobertos no final do século 19 por diversos pesquisadores.

Entre esses cientistas, devem-se ressaltar as investigações conduzidas pelo médico francês Ernest Duchesne (1874-1912) e, principalmente, as pesquisas do biólogo escocês Alexander Fleming (1881-1955) sobre a atividade antibacteriana da penicilina, um composto extraído do fungo Penicillium notatum . As pesquisas de Fleming foram publicadas em 1929 e lhe valeram o Nobel de Medicina em 1945, junto com o australiano Howard Florey e o alemão Ernst Boris Chain.

Superbactérias
As infecções hospitalares podem ser provocadas por um crescimento explosivo de espécies oportunistas presentes na flora bacteriana dos pacientes. A debilidade dos mecanismos de defesa desses indivíduos devido à idade, doenças ou métodos de tratamento cria condições favoráveis para o processo. O uso de procedimentos invasivos (soros, cateteres e cirurgias) ou o contato com bactérias presentes no hospital, em outros pacientes ou membros da equipe médica podem também causar um processo infeccioso.

Após a descoberta e isolamento de diversos antibióticos, os índices de contaminação nosocomial diminuíram de forma significativa. Porém, algumas décadas após o descobrimento desses fármacos, surgiram variantes de bactérias resistentes a vários antibióticos, agravando o problema.

Esse processo de resistência ocorre naturalmente e está relacionado com a ação da seleção natural de mutações casuais que confiram a membros da população de uma determinada bactéria a capacidade de sobreviverem e se reproduzirem mesmo quando expostos a antibióticos.

A foto mostra superbactérias Staphylococcus aureus , uma das principais espécies responsáveis por casos de infecção hospitalar (foto: CDC/Janice Carr/Jeff Hageman).

O uso indiscriminado e inapropriado desses fármacos favorece o surgimento dessas bactérias resistentes a vários antibióticos, conhecidas popularmente como superbactérias. O diagnóstico incorreto, a prescrição errônea e o uso de doses inadequadas de medicamentos, a interrupção prematura do tratamento das infecções, o emprego de antibióticos humanos em alimentos consumidos e a automedicação são fatores que também contribuem para o surgimento da resistência a antibióticos.

Uma vez que a clientela dos hospitais é formada por portadores de patologias diversas e por indivíduos que apresentam um quadro de imunodepressão, esses locais convertem-se em um ambiente propício para a proliferação de infecções bacterianas e para o surgimento das temidas superbactérias.

Biofilmes
Duas outras características desses patógenos tornam esse quadro ainda mais complexo: a capacidade de transferir genes de resistência a antibióticos para outros indivíduos da mesma cepa bacteriana ou para espécies diferentes e a habilidade para desenvolver biofilmes.

A transferência de material genético é um processo comum entre bactérias e ocorre por meio da troca de pequenas porções circulares de DNA conhecidas como plasmídeos. Com esse mecanismo, uma mesma bactéria pode adquirir resistência simultânea contra diversos antibióticos diferentes.

Por outro lado, várias bactérias oportunistas associadas com a infecção hospitalar, como Pseudomonas aeruginosa , Staphylococcus aureus , Staphylococcus epidermidis e Escherichia coli, são capazes de formar um microambiente protetor denominado biofilme – uma microcolônia de espécies de microrganismos mutualistas que vivem imersos em matriz hidratada produzida por essas espécies ou pelo próprio hospedeiro. Representantes de outros grupos de microrganismos como algas, fungos e protozoários também podem ser encontrados nos biofilmes.

Biofilme formado por bactérias Staphylococcus aureus na superfície de um cateter (foto: CDC/Rodney Donlan/J. Carr).

Esses patógenos estão associados com casos de infecção nosocomial oportunista e seus alvos principais são pacientes recém-operados ou transplantados, submetidos à terapia intensiva, infectados por HIV ou sob quimioterapia para tratamento de câncer. Esses microrganismos causam infecções no local das cirurgias, além de estarem relacionados com pneumonias associadas com ventilação, infecções do trato urinário, queimaduras, septicemia e infecções em feridas crônicas.

Os microrganismos presentes em biofilme formam comunidades cujas atividades metabólicas são integradas. Adaptações estruturais e fisiológicas tornam possível a expressão coordenada de genes que criam um ambiente adequado para a proliferação e manutenção da condição vital dos membros dessas microcolônias.

Os patógenos presentes em biofilmes apresentam aumento da resistência a agentes antimicrobianos e às ações do sistema imune. Por isso, essas comunidades de microrganismos estão relacionadas com a ocorrência de infecções crônicas e com uma diminuição da capacidade do organismo hospedeiro de controlar a proliferação e os efeitos prejudiciais de infecções. A transferência de material genético entre as espécies presentes nessas comunidades explica, pelo menos parcialmente, esse fenômeno.

Além disso, esses microrganismos produzem enzimas líticas e toxinas que inibem a recuperação de infecções e promovem um estado inflamatório crônico, resultando na liberação de radicais livres e de outros compostos que podem ter efeitos danosos sobre a saúde dos pacientes. Compostos liberados por esses patógenos inibem fatores de crescimento e inativam proteínas necessárias para o combate a infecções. A produção de toxinas, como a exotoxina A de Pseudomonas aeruginosa , também retarda a recuperação do processo infeccioso.

O caso do Brasil
Os biofilmes são usualmente encontrados em substratos sólidos – como equipamentos hospitalares – associados com soluções aquosas. A dificuldade de se erradicar essas bactérias desses locais, aliada a sua multirresistência a drogas antibacterianas, faz com que esses seres contribuam substancialmente para a mortalidade de pacientes hospitalizados. Sua ocorrência e persistência no ambiente hospitalar tem sido verificada em todo o mundo, particularmente em países em desenvolvimento como o Brasil, e tem tornado infelizmente muitos hospitais verdadeiras fábricas de doenças.

Visando minimizar a gravidade das infecções hospitalares no país, foi criado há alguns anos pelo governo federal o Programa de Controle de Infecções Hospitalares. Contudo, a situação ainda é muito séria: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 36% dos hospitais com leitos para internação não possuem programas para controle e prevenção de infecção hospitalar. Além disso, de acordo com dados do Ministério da Saúde, o Brasil apresenta um percentual de 15,5% de infecção hospitalar – mundialmente, esse índice está em torno de 5%.

Para que essa situação seja mudada, é necessário que a população se inteire da gravidade do problema e solicite que os hospitais de sua cidade tomem medidas para evitar a ocorrência de infecções nosocomiais e possam promover uma assistência e um atendimento de qualidade e seguro para todos.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
31/08/2007

SUGESTÕES PARA LEITURA
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