Segundo a Nomenclatura Gramatical Brasileira, os advérbios se classificam em: lugar, tempo, modo, negação, dúvida, intensidade, afirmação. Além deles, há os interrogativos (de lugar, tempo, modo e causa), divisão que faz pouco sentido.
Uma classificação como esta – ensinada nas aulas e seguida pelos gramáticos! – equivale a sustentar, em biologia, por exemplo, que um corpo se divide em cabeça, tronco e membros (como na minha infância), sem acrescentar informações sobre sangue, pele, células, reprodução, cérebro e ossos, pelo menos. Sem contar o DNA, as células-tronco e outras ‘modernidades’, todas disponíveis até nos jornais.
Defende-se enfaticamente o ensino de gramática. Sem ela, o caos. E não pense que se trata apenas da defesa do português gramatical, isto é, correto, seja lá o que isso signifique. Defende-se também a análise sintática… Mas qual análise? A baseada nessa nomenclatura? Quem defenderia uma nomenclatura oficial, baseada em portaria, para estudar física e astronomia?
A única questão que alguns professores de telejornal discutem sobre advérbios é se faz sentido dizer que uma cerveja ‘desce redondo’ (não discutiram ‘falar ilimitado’, ainda).
Os linguistas estudam advérbios. O que descobrem nunca vai às escolas e nunca está nas provas. O que leva a desconfiar que se cobra conhecimento de gramática apenas como forma de selecionar (excluir!) alunos e candidatos, mas não para conhecer melhor uma língua. De novo, comparemos o que se espera dos estudantes de física/astronomia e o que se espera dos estudantes de gramática: se aqueles fossem instruídos como estes, ainda estudariam o sistema ptolemaico.
Como disse, linguistas estudam advérbios. Mais ou menos como geneticistas estudam genes, isto é, considerando dados, fatos, propondo classificações mais finas e tentando encontrar as regras que os falantes de fato seguem. Em outros termos, tentando descobrir a verdadeira gramática da língua, como os geneticistas procuram entender a ‘gramática’ dos seres vivos.
Novas propostas
O Projeto Gramática do Português Falado (coordenado por Ataliba Teixeira de Castilho) produziu, inicialmente, sete volumes de ensaios – publicados pela editora da Unicamp – sobre diversas questões, da fonologia à organização textual. Na segunda etapa, os diversos temas estão sendo consolidados em novos estudos. Já foram publicados três volumes do que virá a ser essa gramática. Em um deles estão diversos estudos sobre advérbios, fundados num trabalho inicial, que se desdobraram e se ampliaram.
Para que o leitor tenha uma ideia (e, quem sabe, decida ler esses volumes…), apresento algumas das propostas de análise, o que inclui tentativas de classificação, com base tanto na distribuição sintática quanto no funcionamento semântico dos enunciados.
Para começo de conversa, menciono um caso: segundo a nomenclatura oficial, nem se poderiam separar casos como “saiu lentamente”, “tecnicamente, o time é bom” e “infelizmente, tenho que sair”. Em relação ao último caso, gramáticos um pouco mais sensíveis tinham anotado que se trata de advérbios de frase, não se aplicam a outras palavras, mas expressam uma atitude do falante em relação ao que diz (uma paráfrase seria “é uma infelicidade/lamento ter que sair”, o que não se pode fazer com os outros casos; “tecnicamente” quer dizer algo como “do ponto de vista técnico” etc.).
Os autores dos diversos artigos sobre advérbio propõem, por exemplo, classificações como ‘qualificadores’ (canta desafinadamente, mal passada, vieram por acaso, vou tranquilo), ‘aspectualizadores’ (vem vindo paulatinamente/pouco a pouco; ajeitou o cabelo de um só golpe; cirurgia implica necessariamente…; realmente, nunca tinha visto isso; talvez não tenha esse objetivo; um potezinho assim com flores; não que necessariamente precise saber), ‘graduadores’ (muito caro; linda de morrer; muito povo; gostaria demais de ir; cidadezinha totalmente desconhecida; cama ligeiramente inclinada) e ‘quantificadores’ (raramente como doce; normalmente a gente espera; comumente chamamos de verbo).
Há ainda os ‘focalizadores’ (exatamente nove ou dez, realmente não são glândulas sebáceas), os ‘de inclusão ou exclusão’ (apenas, exclusivamente, somente), os ‘aproximadores’ (basicamente, aproximadamente, quase), os ‘delimitadores’ (economicamente, o negócio vai bem; a gente teoricamente não tem controle…), os ‘circunstanciais’ (de lugar, de tempo…). É só uma amostra, extraída de cerca de 100 páginas de exemplos e de análises breves.
Hipóteses auxiliares
Quero destacar um aspecto desses trabalhos, que diz respeito a uma questão sintática específica: a ordem dos advérbios em relação ao elemento (palavra ou expressão) a que se aplicam. Anoto que os advérbios que têm orações como escopo merecem tratamento à parte.
Consideremos casos como ‘dorme muito‘, ‘canta muito bem’, ‘é muito bom’. Pela amostra, isto é, se ela for representativa, pode-se propor que advérbios graduadores têm uma distribuição clara: depois do verbo (dorme) e antes de advérbio (bem) e de adjetivo (bom). Todos estranhariam outra ordem: ‘*muito dorme’, ‘*é bom muito‘…
Mas a regra só vale para advérbios que são palavras. Os que são locuções ocupam sempre a posição posterior: ‘come em excesso‘, ‘linda de morrer‘, ‘bem pra caramba‘ (compare-se com ‘*de morrer linda’, ‘*pra caramba bem’).
O analista pode se defrontar (deve considerar) com casos como ‘come demais‘, ‘é bom demais‘, ‘foi bem demais‘ (compare-se com ‘*foi demais bem’), que implodem a regra proposta, porque demais, embora seja uma palavra, ocupa sempre a mesma posição, o que vale apenas para as locuções…
Mas outros dados ajudam a compreender o que ocorre: expressões como ‘corre paca‘, ‘é bom paca‘, ‘foi bem paca‘ repetem o que acontece com demais. Como isso pode ser explicado?
Uma saída é admitir exceções (comum em gramáticas ruins). Outra é buscar uma hipótese auxiliar que explique os casos. Uma tentativa: consideremos o caso paca (ou pacas): é uma ‘palavra’ que só tem essa característica porque se quer evitar uma expressão inadequada a certos contextos sociais: pra caralho/cacete (o mesmo vale para duca em ‘ele é duca‘).
De certa forma, é uma palavra, mas guarda a memória de quando era uma locução e, por isso, comporta-se como uma locução. Mas o que fazer com demais? Tratar do caso como se fosse análogo a paca(s) não seria forçar a barra, apenas para manter uma regra geral?
Dicionários como o Aurélio e o Houaiss informam que demais deriva de ‘de + mais’ (do latim de + magis). Ou seja: é uma palavra apenas por convenção. Poderia grafar-se de mais, sem nenhum prejuízo.
Então, provisoriamente, pode ser tratada como locução, uma antiga locução que, para efeitos sintáticos, ainda não deixou de ser uma. Garante-se provisoriamente uma gramática regular. Talvez surja uma explicação melhor para casos assim, como ocorre todos os dias nas ciências ditas exatas.
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas