O mistério dos cromossomos cerebrais

Alguém já disse, com muita propriedade, que velho é “aquele que tem 10 anos mais do que você”. Essa definição bem humorada, embora escapista, reflete o que todos sabemos: o envelhecimento é um processo nada agradável, associado a perdas na capacidade física, declínio cognitivo e doenças.

A velhice e a morte são fenômenos naturais, no entanto: ninguém as contesta, porque representam mecanismos biológicos essenciais para prover a renovação das populações em todos os seres vivos, sendo um dos pressupostos da evolução das espécies.

O espantoso é que não sabemos como se explica o envelhecimento. Por que e como o funcionamento dos nossos órgãos vai ficando menos eficiente, a nossa anatomia vai se tornando menos adaptada ao meio, e começamos a contrair doenças de todo tipo? De que modo nosso cérebro começa a falhar, a memória falta, o raciocínio fica mais lento, e as emoções parecem mais ’à flor da pele’? 

Estima-se que a ciência já tenha formulado mais de 300 teorias para explicar o envelhecimento

O neurocientista russo Yuri Yurov, do Centro Nacional de Pesquisa em Saúde Mental da Academia Russa de Ciências Médicas, em Moscou, criador de uma interessante hipótese sobre esse tema, avalia que a comunidade científica já gerou mais de 300 teorias para explicar o envelhecimento!

Muitas teorias, poucas certezas. Uma dessas certezas é que há uma associação entre as chamadas aneuploidias cromossômicas e o envelhecimento. Cromossomos, como sabemos desde os bancos escolares, são estruturas residentes nos núcleos das células, que contêm o DNA.

Durante a vida estável de uma célula, os cromossomos são geralmente “invisíveis”, mas durante a divisão celular eles se tornam mais espessos e podem ser mais facilmente visualizados ao microscópio. Quando isso ocorre, é possível contá-los e identificar a sua forma. Com isso se determinou, há muitos anos, que os seres humanos têm 46 cromossomos reunidos em pares. Células com esse número são chamadas euploides.

Cromossomos humanos
As células humanas têm 23 pares de cromossomos, sendo dois deles (X e Y) os cromossomos sexuais (no caso da imagem acima, trata-se de uma mulher, com dois cromossomos X). Durante a divisão celular eles se tornam mais espessos, permitindo a sua identificação ao microscópio eletrônico (esquerda) e óptico (direita).

Instabilidade cromossômica

Ocorre que às vezes ocorrem defeitos no processo de divisão celular, e o número de cromossomos se torna maior ou menor. Além disso, pode haver perda ou aquisição de pedaços dos cromossomos. Essas anomalias são as aneuploidias, produzidas possivelmente por alguma instabilidade dos cromossomos no processo de divisão da célula.

Se a instabilidade cromossômica ocorrer muito precocemente no período embrionário, a grande maioria das células do organismo serão aneuploides. É isso que acontece na síndrome de Down. Seus portadores têm mais de 90% das células do organismo com 47 cromossomos. A anomalia, nesse caso, consiste na ocorrência de três cromossomos de número 21, em vez dos dois que formam o par normalmente.

As aneuploidias podem ser uma explicação para o envelhecimento

Se a instabilidade cromossômica ocorrer mais tardiamente, só uma parte das células se torna aneuploide: é a chamada aneuploidia em mosaico.

Como os portadores de síndrome de Down apresentam sinais de envelhecimento precoce de seus órgãos, considerou-se que as aneuploidias poderiam ser uma explicação para o envelhecimento. 

 

O paradoxo das aneuploidias cerebrais

Em vista dessa possibilidade, vários grupos de pesquisadores investigaram a frequência das anomalias cromossômicas nos diferentes órgãos do corpo. Elas foram encontradas em número maior nas pessoas mais idosas, maior ainda em certas doenças como o câncer.

Esses estudos foram facilitados pela invenção de técnicas moleculares capazes de permitir a visualização dos cromossomos fora do período de divisão celular, o que permitiu inclusive investigá-los em órgãos que apresentam baixo grau de proliferação das células, como é o caso do cérebro.

Em 2005, um grupo de neurocientistas do Instituto de Pesquisas Scripps (Estados Unidos), liderado por Stevens Rehen, hoje professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), buscou determinar a incidência de aneuploidias cromossômicas no cérebro humano normal, utilizando fragmentos obtidos de um banco de cérebros.

O trabalho de Rehen gerou resultados surpreendentes: 4% das células cerebrais eram aneuploides para o cromossomo 21, uma proporção quase 10 vezes maior do que a do sistema imunitário. E tanto neurônios quanto células gliais apresentavam essa anomalia cromossômica. Considerando que o cérebro humano tem quase 200 bilhões de células no total, a proporção de 4% significa algo como 6-8 bilhões de células! E isso apenas para o cromossomo 21.

O cérebro humano normal tem 4% das células aneuploides para o cromossomo 21

O grupo conseguiu verificar também que os neurônios aneuploides eram funcionais e perfeitamente integrados aos circuitos cerebrais.

Bem, temos duas questões importantes, aqui. A primeira é que os resultados de Rehen foram obtidos em indivíduos normais, sugerindo a intrigante possibilidade de que as aneuploidias – pelo menos nas taxas observadas – sejam as fontes da grande variabilidade celular que caracteriza o cérebro. Elas justificariam nesse caso a grande variabilidade cognitiva e afetiva dos seres humanos: cada um de nós é único e especial em toda a humanidade!

A segunda questão é que ou o sistema nervoso – especialmente o córtex cerebral – é capaz de gerar novos neurônios na vida adulta (uma tese ainda bastante controvertida), ou o nosso contingente de neurônios aneuploides é determinado durante o desenvolvimento embrionário! 

Aneuploidia no cérebro humano
Os pontinhos vermelhos em cada foto (assinalados pelas setas nos detalhes) mostram o cromossomo 21 no cérebro humano, em casos com apenas 1, 2 (normais), 3 ou 4 cromossomos. Modificado de Rehen e colaboradores (2005).

Aneuploidias e envelhecimento

O grupo russo de Yurov investiu mais fortemente na relação entre a frequência de aneuploidias cerebrais e a idade das pessoas, buscando estabelecer se essas anomalias cromossômicas seriam causadoras dos fenômenos do envelhecimento.

A hipótese que eles lançaram recentemente tem o nome curioso de GIN n’ CIN, das abreviaturas em inglês de ’instabilidade genômica‘ e ’instabilidade cromossômica‘, respectivamente.

Defendem esses pesquisadores que o cérebro humano é muito suscetível à ocorrência de eventos de instabilidade do DNA e dos cromossomos durante o desenvolvimento embrionário – esses eventos seriam responsáveis por gerar cerca de 30-35% de células aneuploides. Essas células seriam eliminadas em grande medida, restando algo como 10% de aneuploides sobreviventes após o nascimento.

Será que o tipo de envelhecimento que teremos já está programado desde a nossa vida embrionária?

Qualquer insuficiência na eliminação adequada dessas células ’anômalas‘ causaria doenças neurológicas, a maioria delas envolvendo o envelhecimento precoce e o câncer.

Os neurocientistas russos consideram também que o cérebro humano, sendo dotado de alguma capacidade de gerar novos neurônios na vida adulta, poderia produzir um componente adicional de células aneuploides.

Juntando isso tudo, ficam no ar questões sem resposta. Será que o tipo de envelhecimento que teremos (daqui a dez anos…) já está programado desde a nossa vida embrionária?

Se for o caso, será que a identificação das aneuploidias cerebrais em crianças, quando for possível realizá-la em vida, terá a capacidade de definir quais dessas crianças terão vida longa com a mente lúcida, e quais serão vítimas da doença de Alzheimer ou de câncer cerebral? 

Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sugestões para leitura:

S.K. Rehen e colaboradores (2005) Constitutional aneuploidy in the normal human brain. Journal of Neuroscience vol. 25: pp. 2176-2180.

M.A. Kingsbury e colaboradores (2005) Aneuploid neurons are functionally active and integrated into brain circuitry. Proceedings of the National Academy of Sciences USA vol. 102: pp.6143-6147.

Y.B. Yurov e colaboradores (2009) GIN n’CIN hypothesis of brain aging: deciphering the role of somatic genetic instabilities and neural aneuploidy during ontogeny. Molecular Cytogenetics, vol. 2: doi:10.1186/1755-8166-2-23.