O narrativismo evolucionário e o camaleão

“Il n’y a pas de hors-texte”
Jacques Derrida 
 
Esta citação do famoso filósofo francês (1930-2004) é geralmente traduzida como “não há nada além do texto” e interpretada no sentido de que Tudo (com T maiúsculo para não deixar dúvidas) é de alguma maneira um texto, uma estória. Conseqüentemente, tudo, até a narrativa de vida de uma pessoa, pode ser submetido às técnicas de desconstrução textual. Que o diga Howard Crick, personagem de Stranger than fiction (“Mais estranho que a ficção”), original e brilhante filme do diretor Marc Forster que já está disponível em DVD no Brasil. Para entender se sua vida é uma comédia ou uma tragédia, Howard tem de recorrer à ajuda de um crítico literário e não de uma psicanalista.

Por sua habilidade de continuamente adaptar suas cores ao meio ambiente, o camaleão é emblemático da capacidade de autodefinição e recriação constante.

No clássico e brilhante artigo “The spandrels of San Marco and the panglossian paradigm” (‘Os tímpanos de São Marcos e o paradigma panglossiano’; acesse o texto aqui ) meus ídolos Stephen Jay Gould e Richard Lewontin desconstruíram impiedosamente as estorinhas “panglossianas” evolucionárias inventadas e divulgadas por aqueles que Gould chamou de “ darwinian fundamentalists ” (uma boa tradução talvez seja “darwinistas evangélicos”). Tratamos disso em uma coluna há alguns meses. De fato, muitas narrativas evolucionárias são fáceis de se desconstruir porque em geral o besteirol é ululantemente óbvio.

Por exemplo, em recente artigo do psicólogo Bruno Laeng e seus colaboradores da Universidade de Tromso (Noruega) no periódico Behavioral Ecology and Sociobiology , os autores afirmam que homens de olhos azuis acham as mulheres de olhos azuis mais atraentes do que mulheres de olhos castanhos. A explicação oferecida foi que, como olhos azuis seriam putativamente recessivos com relação a olhos castanhos, essa preferência refletiria uma adaptação inconsciente para detecção de paternidade (a idéia sendo que, se sua esposa o traísse com um homem de olhos castanhos e engravidasse, a criança teria olhos castanhos, revelando a infidelidade). Não sei o que vocês leitores acham disso, mas pessoalmente considero um disparate!!!

Adicionalmente, vejam as estórias da carochinha que a revista Veja publicou na reportagem de capa sobre Darwin em 9 de maio último. Uma delas, sobre um personagem de Shakespeare, afirma: “Em Otelo , enlouquecido pelo ciúme, o mouro mata a sua amada, Desdêmona. Como o personagem, o macho é, na maioria das espécies, sexualmente competitivo. Isto porque a traição da parceira pode levá-lo a criar o filho de outro.” Que tolice!

Examinemos também afirmativas contidas em outro artigo de capa sobre Darwin, desta vez na revista Superinteressante de junho de 2007: “O desejo de variedade sexual nos homens é insaciável. Quanto maior for o número de mulheres com quem um homem tiver relações, mais filhos ele terá [pelo menos é o que ‘pensam’ seus genes] ” ou, de maneira ainda mais radical: “Sendo assim, o que o neodarwinismo diz é: você não ’ama‘ seus filhos e irmãos. São seus genes que vêem neles maneiras de se perpetuar”. Pobre Darwin!

Escravos do genoma
Tal narrativismo evolucionário está intimamente relacionado com a idéia ingênua de que todos os traços comportamentais da humanidade possam ser explicados por nossos genomas. E, pior ainda, que as características fundamentais da vida psicológica e social humana sejam meros instrumentos a serviço do cego e maquiavélico instinto competitivo dos genes. Trocando em miúdos, o que o darwinismo fundamentalista propõe é que somos escravos do nosso genoma e marionetes dos nossos genes!

O chimpanzé (A), o gorila (B) e o gibão (C) são diferentes espécies de primatas do Velho Mundo com comportamento sexual e estrutura reprodutiva completamente diferentes.

Uma das manias irritantes dos psicólogos evolutivos e sociobiólogos contadores de estorinhas evolucionárias é tentar explicar nossa conduta com base na observação do comportamento de primatas não-humanos. Um dos argumentos usados para justificar esta estratégia é que eles são os nossos “parentes” evolucionários mais próximos, especialmente os primatas do Velho Mundo. O público aceita isso e a imprensa reforça essa visão.

Um bom exemplo é uma recente edição do programa de televisão Globo Repórter (4 de maio de 2007) que teve como tema as diferenças sociais entre homens e mulheres. Uma parte considerável do programa foi dedicada a mostrar o comportamento afetivo de casais de primatas em uma reserva brasileira (nesse caso eram primatas do Novo Mundo, evolucionariamente bem mais distantes de nós). Qual seria o intuito dos produtores do programa? Mostrar que sexualmente nos comportamos como os primatas?

E como realmente se comportam sexualmente os primatas não-humanos? Uma análise cuidadosa constatará que cada espécie se conduz de maneira completamente diferente das demais. Por exemplo, chimpanzés machos e fêmeas são poligâmicos; gorilas machos são poligâmicos enquanto as fêmeas são monogâmicas e gibões machos e fêmeas são todos estritamente monogâmicos. Assim, pela escolha criteriosa da espécie de primata com a qual vamos comparar a humanidade, podemos “provar” que qualquer comportamento sexual que estiver no cardápio é “evolucionariamente determinado”.

Metafísica genômica
O bioeticista suíço Alex Mauron define a “metafísica genômica” como sendo a crença no genoma como núcleo essencial do organismo, determinante de sua individualidade e de suas particularidades e também estabelecendo o seu pertencimento a uma determinada espécie. Nessa visão genomocêntrica, nosso conjunto de genes constitui a parte mais essencial do ser humano e determina algo que tem sido chamado de “natureza humana”, à qual estaríamos inexoravelmente atrelados. Assim, o genoma se torna o equivalente secular da alma.

Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), filósofo renascentista italiano que escreveu o “Discurso sobre a dignidade do homem”.

Contrastem a pobreza desse paradigma determinista com a beleza do manifesto humanista do filósofo italiano Pico della Mirandola (1463-1494) que ainda no Renascimento atribuiu a Deus, em seu “Discurso sobre a dignidade do homem”, as seguintes palavras:

“Não te dei, ó Adão, nem rosto, nem um lugar que te seja próprio, nem qualquer dom particular, para que teu rosto, teu lugar e teus dons, os desejes, os conquistes e sejas tu mesmo a obtê-los. Existem na natureza outras espécies que obedecem a leis por mim estabelecidas. Mas tu, que não conheces qualquer limite, só mercê do teu arbítrio, em cujas mãos te coloquei, te defines a ti próprio … Ó suma liberdade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do homem, ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer … Quem não admirará este camaleão?”

Resumo da ópera: não há “natureza humana” fixa e pré-estabelecida. Nós criamos nossa própria natureza e história no processo de viver. Temos livre-arbítrio e infinitas possibilidades de construir nossos próprios destinos. Como escreveu o peruano Mario Vargas-Llosa em recente resenha :” A identidade (humana) não é uma condição metafísica, e sim uma realidade viva e portanto em permanente processo de recriação”.

A aposta de Pascal e a aposta de Pena
O grande pensador francês Blaise Pascal (1623-1662) propôs, na famosa “aposta de Pascal”, que mesmo quem tem dúvidas quanto à existência de Deus deve agir como se ela fosse um fato. Afinal, se Deus não existir, tanto faz acreditarmos ou não. Mas, se Deus existir, é melhor que acreditemos nele(a) para conquistar o reino dos céus.

Pois bem, eu gostaria de parafrasear Pascal e propor agora a “aposta de Pena”. Mesmo que alguns possam ainda ter dúvidas quanto ao fato de o ser humano ter infinita liberdade para se “criar”, se inventar, se definir e ser aquilo que quiser, devemos agir como se isso fosse um fato. Meu conselho é: aposte no camaleão!


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
08/06/2007