O patinho feio

 

Dezembro é o mês das listas dos melhores e piores do ano, assim como das previsões e resoluções para o ano seguinte. No topo de minha lista com os sucessos científicos de 2006 está o reconhecimento da importância do ácido ribonucléico (RNA) para a ciência pelos sisudos membros do Real Instituto Sueco de Medicina e Cirurgia (Instituto Karolinska), responsáveis pela definição dos agraciados com o prêmio Nobel.

A foto ilustra os efeitos da interferência de RNA: na flor acima, um gene que controla a produção do pigmento roxo foi desativado quando ela estava se desenvolvendo. Por isso, as células nascidas em seguida eram brancas (foto: Richard Jorgensen, Universidade do Arizona).

Neste ano, a comissão resolveu conceder o Nobel de medicina ou fisiologia para os norte-americanos Andrew Fire e Craig Mello , respectivamente das Universidades de Stanford e de Massachusetts (EUA). Eles foram premiados pela descoberta dos mecanismos de interferência de RNA (RNAi), publicada inicialmente em 1998 na revista Nature . A atribuição do prêmio em um intervalo tão curto ― algo nada costumeiro em se tratando do Nobel ― demonstra a importância e transcendência das pesquisas de Fire e Mello.

A RNAi é utilizada pelas células animais e vegetais para controlar o fluxo de informação gênica por meio do bloqueio de genes específicos. Atualmente, o emprego desse processo como ferramenta em estudos diversos tem revolucionado o nosso conhecimento da biologia molecular dos eucariotos e tem levado a uma mudança drástica na forma como vemos o RNA.

Transmissão da informação genética
Os ácidos nucléicos são conhecidos há mais tempo do que você pode imaginar: foram descobertos em 1868 pelo biólogo suíço Johan Friedrich Miescher (1844-1895). No entanto, essas macromoléculas tiveram sua importância subestimada até 1952, quando dois pesquisadores americanos do Laboratório Cold Spring Harbor (EUA) chamados Alfred Hershey (1908-1997) e Martha Chase (1927-2003) realizaram um famoso e elegante experimento utilizando vírus bacterianos (bacteriófagos) e associaram a presença do DNA com a transmissão de informações genéticas.

Por muito tempo não se soube como as informações genéticas presentes no DNA levavam à produção de proteínas no citoplasma. Esse elo perdido foi descoberto graças ao trabalho do cientista belga Hubert Chantrenne (1918-), da Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica), que demonstrou que a transferência da informação genética é feita pelo RNA. Chantrenne associou a presença de novas fitas de RNA radioativo de bacteriófagos com a ocorrência de proteínas recém-sintetizadas nas células bacterianas hospedeiras.

Apesar dessas descobertas, o RNA foi tratado durante um longo período como um coadjuvante de proteínas e do DNA. Sua atuação nas células resumia-se a alguns papéis na síntese de proteínas, estando envolvido na transferência da informação genética entre o núcleo e o citoplasma (RNA mensageiro) ou com a produção de proteínas (tradução). Durante a tradução, os RNAs participam da composição das “fábricas” produtoras de proteínas conhecidas como ribossomos (RNA ribossomal), além de estarem relacionados com o transporte de aminoácidos para os ribossomos (RNA de transferência). 

Andrew Fire (esq.) e Craig Mello (dir.), contemplados com o Nobel de medicina ou fisiologia em 2006. Fotos: Stanford (esq.) e UMass (dir.).

Nos anos posteriores, contudo, uma série de descobertas transformou o RNA de patinho feio em um dos atores principais da biologia molecular. Desde a década de 1980 descobriu-se que alguns genes codificam moléculas de RNA que não são transformadas em proteínas conhecidas como ncRNA ( non-coding RNA ou RNA não codificante). Os RNAs de transferência e ribossomal são os ncRNAs mais conhecidos, mas existem milhares de moléculas similares no genoma envolvidas com a regulação da expressão gênica por meio do processo de interferência de RNA descrito por Fire e Mello.

Por exemplo, alguns desses RNAs conhecidos como microRNAs são pequenas seqüências compostas por 21-23 nucleotídeos presentes em todos os metazoários que regulam a expressão gênica por meio da inibição de RNAs mensageiros após o emparelhamento com regiões complementares dessa moléculas.

Interferência de RNA
A interferência de RNA esta relacionada com diversos processos celulares nos eucariotos, como a organização de regiões genômicas e transporte e modificação de histonas, as proteínas empacotadoras do DNA. Acredita-se que a RNAi esteja associada com a resposta imune contra vírus e material genético estranho. Esse processo parece ser particularmente importante para a proteção de plantas contra a ação dos “genes saltadores” ou transposons.

Essa versatilidade do RNA fez com que essas moléculas fossem consideradas candidatas a terem sido as primeiras macromoléculas surgidas em nosso planeta. Essa teoria, conhecida como “mundo de RNA”, foi proposta em 1962 pelo biólogo molecular americano Alexander Rich (1925-), do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (EUA), e supõe que moléculas primitivas de RNA seriam capazes de estocar, transmitir e duplicar a informação genética (como o DNA), além de atuar como enzimas para catalisar reações químicas envolvendo moléculas primitivas.

Apesar dos resultados das pesquisas com interferência de RNA em 2006 terem sido considerados “pouco significativos” pela revista americana Science , ― que também publica no fim de ano sua lista de sucessos e fracassos científicos e previsões para o ano seguinte ―, a concessão do Nobel para Fire e Mello sinaliza que ótimas notícias podem surgir futuramente. Dessa forma, o RNA passará a assumir um papel cada vez mais importante na biologia do século 21.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
29/12/2006

SUGESTÕES PARA LEITURA
Artigos relacionados a esta coluna no blog Aventuras da Ciência ( http://aventurasdaciencia.blogspot.com ): “Os atores principais” e “Os genes cangurus de Bárbara”.
Orgel, L.E. 2004. Prebiotic Chemistry and the Origin of the RNA World. Critical Reviews in Biochemistry and Molecular Biology , 39:99-123.
Mello, C.C., Conte Jr., D. 2004. Revealing the world of RNA interference. Nature , 431: 338-342.
Levy, M., Miller, S.L. 1998. The stability of the RNA bases: Implications for the origin of life. PNAS , 95:7933-7938
Tannenbaum, E. 2005. An RNA-centered view of eukaryotic cells. BioSystems , 84(3):217-24.