O peru de Natal e a ciência

Está chegando mais um Natal. É época de comer peru!  

De fato, a ave tornou-se para nós um dos elementos mais importantes dos festejos de fim de ano, um verdadeiro ícone.

Em seu famoso conto “Peru de Natal” (que inspirou o título dessa coluna), o literato paulista Mário de Andrade (1893-1945) descreve com precisão uma ceia de sua adolescência: “O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso”.

Hoje, falaremos de diferentes aspectos do peru.

Uma confusão de nomes

O peru tem tido sérios problemas de identidade ao longo dos séculos. De fato, o nome é dado a uma ou outra de duas espécies de grandes aves selvagens do gênero Meleagris nas Américas. Uma das espécies (Meleagris gallopavo), chamada de peru selvagem no seu estado natural nas florestas dos Estados Unidos e México, foi domesticada pelos astecas muito antes da chegada de Colombo e constitui o nosso contemporâneo peru de Natal. A outra espécie, Meleagris ocellata, é indígena da península de Iucatã e América Central e nunca foi domesticada.

Os perus são vítimas de grande confusão taxonômica e terminológica

Com a chegada dos europeus às Américas, os perus passaram a ser vítimas de grande confusão taxonômica e terminológica. Primeiro eles foram incorretamente identificados como sendo uma espécie de galinha d’angola (Numida meleagris) que, em inglês, é chamada de guinea fowl ou turkey-cock. Esse último nome veio do fato de que, na Inglaterra, as galinhas d’angola eram importadas através da Turquia (“Turkey”). O nome desse país passou então a ser metonimicamente empregado para designar a nova ave encontrada nas Américas. A confusão é refletida no fato de que o gênero taxonômico do peru – Meleagris – quer dizer galinha d’angola em grego.

Em outras línguas, são mais comuns referências à Índia. Isso provavelmente se deve à confusão das Américas com a Índia, que remonta a Colombo, e também a uma tendência a dar nomes de terras estrangeiras e longínquas a animais igualmente exóticos. E para os Europeus as Índias, a Turquia e a Guiné, na África, eram nomes genéricos para lugares similarmente exóticos. Assim, por exemplo, o mamífero sul-americano que chamamos em português de porquinho-da-índia (Cavia porcellus) é chamado de guinea pig pelos ingleses.   

Dessa maneira, em turco, o peru é chamado de hindi que quer dizer “vindo da Índia”. De forma similar temos o francês dinde (“da Índia”), o hebraico tarnegol hodu (תרנגול הודו), que literalmente significa “galinha indiana”, e o russo indiuk (индюк), que também se refere à Índia. A palavra em holandês é kalkoen, derivada da cidade de Calicute na Índia – o mesmo ocorre em dinamarquês, norueguês e sueco.

De forma curiosa, em grego o peru é gallopoula que significa  “ave francesa” e no gálico escocês é cearc frangais, ou seja, “galinha francesa”.

Aparentemente o nome peru que utilizamos em português vem do país Peru que, por sua vez, deriva da palavra Piruw, do quéchua, a língua dos Incas. Era de lá que a ave era exportada para Portugal. Em espanhol é diferente: pavo salvaje, também chamado mais simplesmente pavo, ou pisca, chumpipe, guajolote ou guanajo.

Era uma vez uma fazenda onde eram criados perus. Um deles comentou um dia: “Como o nosso fazendeiro é bom! Todo dia ele nos alimenta sem falta”. Os outros perus concordaram, adicionando: “Realmente ele vem nos alimentando fielmente desde o tempo em que saímos do ovo”. E toda a peruzada alegremente fazia glu-glu, elogiando a benevolência do fazendeiro.

Mas havia um peru, inteligente e excêntrico, que contrariava a todos dizendo: “Como vocês sabem que ele é tão bom assim? No Natal passado, alguns dos nossos colegas mais rechonchudos foram tirados daqui e nunca mais os vimos. O que aconteceu com eles?”

Mas na manhã seguinte o fazendeiro retornou como de costume e alimentou fartamente todos os perus. Eles comeram com satisfação, dizendo ao colega criador de caso: “Está vendo? Não há nada para se preocupar. O fazendeiro até nos deu comida extra, o que quer dizer que nos ama. Ele é um bom homem!”

Então chegou dezembro. Todos os perus foram colocados em uma  camionete e levados para o matadouro.

Moral da estória: Você nunca pode prever o futuro a partir de experiências passadas!

Bertrand Russell
Bertrand Russell, lógico e matemático inglês que ganhou o Nobel de Literatura em 1950 (foto: Fundação Nobel).

Essa estória ilustra bem “o problema da indução” e é derivada do Capítulo IV (On  Induction) do livro Os problemas da filosofia, do lógico inglês Bertrand Russell (1872-1970), que ganhou o Nobel de Literatura em 1950. Russell usa galinhas em seu exemplo, mas o mesmo funciona igualmente bem com os nossos perus. Afinal, como diz um provérbio português: “Galinha e peru, tudo é um”.

O problema da indução

Vamos agora trazer essa discussão para a esfera humana, usando outro exemplo de Bertrand Russell. Ele pergunta se alguém tem a menor dúvida de que o Sol vai nascer amanhã. É claro que ninguém duvida disso. Por que não?

Vamos sempre dizer que o Sol nascerá amanhã, porque nasceu fielmente todos os dias desde que a humanidade apareceu. Podemos até tentar justificar nossa posição citando as leis newtonianas de rotação e translação dos corpos celestes etc.

Como podemos ter certeza que as leis da física continuarão a vigorar amanhã?

Mas a questão é muito mais básica e profunda: como podemos ter certeza que as leis da física continuarão a vigorar amanhã? Podemos dizer que há uma alta probabilidade de isso ocorrer, mas não podemos ter certeza.

Esse é o problema da indução que, pela sua complexidade, não poderemos discutir de maneira mais completa nesta singela coluna. Convido o leitor a consultar outras fontes, como, por exemplo, a Enciclopédia de Filosofia de Stanford, disponível gratuitamente na internet.

David Hume
David Hume (1711-1776), filósofo escocês, cético, guia intelectual dos cientistas críticos, retratado pelo pintor escocês Allan Ramsay (1713–1784).

Mas um nome que emerge como central nessa discussão é o do filósofo escocês David Hume (1711-1776), que mostrou que a indução não pode ser racionalmente justificada. O argumento é simples: como a indução não é um método à prova de erros – mesmo induções perfeitas podem conduzir a falsidades (como demonstrado na parábola dos perus) –, não se pode justificar a indução usando um raciocínio dedutivo. Por outro lado, seria circular tentar justificar a indução usando a própria indução.

Tal posição cética de Hume  tem consequências drásticas para nós. Como diz Russell, o objetivo da ciência é exibir relações causais em termos de um sistema dedutivo onde efeitos seguem as causas, assim como as conclusões de argumentos válidos seguem necessariamente de suas premissas. Nisso a ciência é campeã e seus feitos fantásticos estão por toda parte.

A premissa mais elementar da ciência é fundamentalmente indutiva e não pode ser logicamente validada

Mas o que Hume está dizendo é que a premissa mais básica e elementar da ciência – de que as leis da natureza permanecerão constantes no futuro – é fundamentalmente indutiva e não pode ser logicamente validada.

Ceticismo no dia a dia

O ceticismo de Hume pode parecer paralisante. Mas não é. Nós, os cientistas, não somos obrigados praticar a experimentação seguindo os filósofos. Pelo contrário, são os filósofos da ciência que têm de explicar como e por que os cientistas empíricos são tão bem sucedidos na prática.

É interessante ver como Hume lidava com o seu próprio ceticismo. Em seu livro Tratado da natureza humana, ele descreve como jantava e jogava cartas com seus amigos para “dispersar as nuvens de ceticismo”, se curar da “melancolia e delírio filosófico” e “obliterar as quimeras que a reflexão abstrata o levou a inventar”. E ele descreve que quando, após três a quatro horas de divertimento com seus amigos, ele voltava à suas especulações, elas lhe pareciam tão forçadas e ridículas que ele não tinha vontade de continuar nelas.

Sigamos o exemplo de Hume. Nesse Natal vamos nos reunir com amigos e esquecer a filosofia em uma boa ceia, com um bom vinho e, sobretudo um saboroso peru.

Boas festas para todos!

 

Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais