O que será que elas falam de nós?

As bactérias são consideradas seres com um ciclo de vida, estrutura e hábitos muito simples. Por muito tempo, acreditou-se que suas células tinham vida independente em relação a seus vizinhos, exceto por um ou outro contato ocasional durante sua reprodução. Porém, essa visão tem sofrido uma grande reviravolta nos últimos anos e pesquisas têm mostrado que esses seres primitivos possuem uma vida muito mais rica e diversa do se supunha.

Bactérias Escherichia coli observadas ao microscópio eletrônica de varredura. O estudo desses microrganismos está provocando uma reviravolta na forma como a ciência enxerga as bactérias (foto: Agriculture and Agri-Food Canada).

Entre os cientistas envolvidos nessa “redescoberta” da biologia das bactérias está a microbiologista brasileira Vanessa Sperandio, professora da Universidade do Texas em Dallas. Ela e sua equipe pesquisam bactérias da espécie Escherichia coli , que ocorrem normalmente aos trilhões em nossos intestinos, onde são parte da chamada flora microbiana. Ali, essas bactérias encontram abrigo e alimentação farta. Porém, elas não são meras comensais e acredita-se que contribuam – desde que mantidas sob estrito controle de nosso sistema imune – para que absorvamos nutrientes e vitaminas, além de evitarem que nossos intestinos sejam invadidos por outras bactérias patogênicas.

Apesar disso, todo ano um grande número de pessoas são vítimas de infecções alimentares – muitas vezes fatais – causadas por uma cepa virulenta dessas bactérias, conhecida como Escherichia coli êntero-hemorrágica (EHEC). Essas infecções podem ser fatais, principalmente em crianças, idosos e em pessoas com baixa imunidade. Nos Estados Unidos, casos fatais de infecção intestinal causados por EHEC presentes em hambúrgueres de algumas redes de lanchonetes fast-food tiveram enorme repercussão há alguns anos.

Sperandio e seus colaboradores têm mostrado que dois hormônios – conhecidos como epinefrina e norepinefrina – relacionados com o controle da nossa atividade intestinal são componentes-chave na infecção pelas EHEC. Acredita-se que os níveis desses hormônios sejam empregados pelas EHEC para avaliar a imunidade do organismo e ativar fatores relacionados com a reprodução e infecciosidade. Essas bactérias também são capazes de ativar a produção de compostos químicos que coordenam a proliferação de outras bactérias no local por um processo conhecido como como percepção de quórum ( quorum sensing ).

As bactérias produzem compostos químicos em resposta a sinais de seu microambiente. Assim, podem decidir quando é o melhor momento para se reproduzirem, se dirigirem para outro local ou mesmo formar esporos em resposta a situações adversas.

Hoje sabemos que bactérias interagem entre si e que são capazes de se comunicar com representantes de outras espécies e, talvez, mesmo com células eucarióticas. Seria como se, por exemplo, fôssemos capazes de nos comunicar com outros animais ou mesmo de bater um papo com aquela samambaia de nossa mãe.

As bactérias são os seres vivos de maior sucesso evolutivo conhecido. Surgiram há uns 2,5 bilhões de anos, antes do aparecimento das células eucarióticas, e colonizaram praticamente todos os ambientes existentes em nosso planeta. Se você goza de boa saúde e tem bons hábitos de higiene, certamente possui em seu corpo alguns trilhões de bactérias.

Até há pouco tempo esses seres eram vistos como meras estruturas capazes de autoduplicação e que faziam isso de forma muito eficiente: as bactérias se caracterizam por uma elevada taxa reprodutiva – cerca de uma duplicação a cada 20 minutos. A essa velocidade, uma única bactéria, se não tivesse nenhum fator de impedimento, poderia produzir 280 bilhões de indivíduos em um só dia.

Porém, o processo de percepção de quórum acrescenta uma complexidade muito maior à vida das bactérias. A possibilidade de que bilhões destes organismos – muitas vezes de espécies diferentes – possam agir de forma coordenada, utilizando-se de sinais de nosso próprio organismo para provocar infecções, é assustadora e ao mesmo tempo explica grande parte da dificuldade que a medicina atual enfrenta para combater doenças bacterianas.
 

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line
05/05/2006