Um dos valores mais arraigados de nossa cultura é o da consanguinidade, ou seja, o da descendência ou parentesco pelo ‘sangue’. Embora hoje recoberta pela ideia dos genes, fenômeno recente, essa representação ancora a pessoa humana na base naturalista de nossa visão de mundo: somos feitos da matéria combinada de nossos pais e mães; eles, de seus respectivos pais e mães, e assim até o primeiro casal de Homo sapiens.
Efetivamente, como todos os mamíferos superiores, somos sexualmente diferenciados, dependemos de uma reprodução sexuada, e o desamparo original dos infantes humanos exige um longo suporte coletivo quase universalmente oferecido por um pequeno círculo doméstico.
Esses dados biológicos de base são, porém, matéria de uma das mais complexas elaborações simbólicas da humanidade: os sistemas de parentesco. Não há sociedade que não tenha se dedicado a definir rigorosamente as regras dos casamentos possíveis e proibidos de seus membros – a chamada ‘proibição do incesto’.
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss ofereceu uma das mais poderosas interpretações dessas regras ao enunciar o seu ‘princípio de aliança’. Segundo ele, a entrada humana em seu estado de cultura é marcada pela necessidade e ordenação da troca social: a de bens, a de palavras e a de mulheres.
Ao lado da economia e da linguagem, as regras de parentesco instituem a humanidade e suas variações produzem a especificidade de cada sistema simbólico. Sem a troca, não haveria sociedade. Sem as complexas tramas do parentesco – a que estão associadas todas as demais dimensões da vida social –, não haveria uma ordem simbólica, uma cultura.
O princípio da aliança depende da distinção entre doadores e receptores, ou seja, entre o grupo de que se considera membro qualquer sujeito humano e um grupo outro, contrastivo, capaz de garantir a alteridade necessária à operação.
A maior parte das regras de parentesco elabora a dinâmica entre o idêntico e o diferente a partir da oposição entre os parentes paralelos e os cruzados. Paralelos são os parentes descendentes dos germanos (irmãos e irmãs) de mesmo sexo dos pais; cruzados, o oposto.
Os filhos do irmão do pai ou da irmã da mãe são os paralelos, considerados idênticos ao tal sujeito – chamado em antropologia de ‘ego’. Os filhos da irmã do pai ou do irmão da mãe são os cruzados e constituem uma linhagem outra, na qual o ‘ego’ poderá buscar sua cônjuge.
A cultura ocidental privilegiou um sistema chamado de bilateral, porque considera parentes tanto os paralelos quanto os cruzados. Sua proibição de incesto independe da direção do cruzamento de parentes, e a escolha dos cônjuges obedece a um princípio estatístico e não prescritivo. Consideramos consanguíneos todos os parentes pelo lado do pai e da mãe e a afinidade se restringe aos parentes da esposa (ou esposo, evidentemente), encontrados provavelmente nos termos da ‘ideologia do amor’.
Essa é uma das ancoragens históricas para nossa representação dos vínculos de sangue. Um pouco de um lado, outro pouco do outro, e estamos engatados em uma árvore genealógica frondosa, com galhos idênticos de ambos os lados.
Do casamento para o indivíduo
As tramas do parentesco são, porém, muito mais complexas do que apenas a regulação da procriação. Elas lidam com os fatos da procriação, mas os envolvem em redes de significado muito elaboradas, carregadas de tensões e conflitos, e muito estranhas aos nossos olhos.
Há sociedades poligâmicas e poliândricas (uma esposa para vários maridos); há sociedades que praticam o infanticídio generalizado, com adoção de filhos de uma casta escrava; há sociedades que praticam a reprodução incestuosa sistemática em suas casas reais; há sociedades em que casamentos homossexuais das elites se combinam com a adoção de descendentes oficiais nascidos na plebe; há sociedades em que o primeiro filho de uma mulher deve ser gerado por um amante cuja identidade deverá permanecer secreta para o filho; e assim indefinidamente.
Nós não consideramos estranhos, no entanto, os nossos próprios costumes, que tendem a desvalorizar as adoções, por exemplo, e que levam muita gente a despender rios de dinheiro e torrentes de lágrimas para conseguir levar a cabo uma reprodução assistida (inseminação artificial, barriga de aluguel etc.) que lhes garantirá um herdeiro ‘de sangue’.
Acabo de participar da banca examinadora de uma tese sobre processos de investigação de paternidade, baseada em sujeitos que haviam sido registrados sem o nome do pai e que buscavam, por diversos meios, obtê-lo. Desde meios pessoais, contatos cuidadosos com os supostos pais ou com suas famílias, até processos judiciais com exames oficiais de DNA, no limite da luta.
Essas pessoas relatam um longo calvário de insegurança e ansiedade, à luz da ilegitimidade do ‘filho natural’ ou ‘bastardo’. Sabrina Finamori, autora da tese, desenhou a etnografia dessas carreiras de busca identitária contra o pano de fundo da história da legislação sobre reconhecimento de paternidade no Brasil, profundamente alterada com o surgimento de recursos técnicos considerados como irretorquíveis.
As técnicas passadas – que incluíam comparação fisionômica, medidas antropométricas, análise dos tipos sanguíneos – foram contemporâneas de uma legislação que visava sobretudo proteger a instituição do casamento, heterossexual, monogâmico e indissolúvel. Expelia para os limites da sociedade os bastardos, nascidos de relações incestuosas, avulsas ou adúlteras.
A legislação contemporânea vem se desenvolvendo na direção da proteção crescente dos indivíduos – e não do casamento. Assim, não só é agora possível o reconhecimento de paternidade independentemente da condição conjugal do genitor, como há iniciativas do Estado de promoção do reconhecimento em todas as situações que forem do seu conhecimento – como no projeto ‘Pai legal na escola’, criado pelo Ministério Público em 2002.
Supervalorização ‘de sangue’
Já que valorizamos tão fundamente o conhecimento sobre os nossos ‘verdadeiros’ pais, essas iniciativas são possivelmente bem-vindas, contribuindo para a minoração de sofrimentos e constrangimentos, sobretudo nas classes populares.
Por outro lado, não se pode deixar de registrar – como o fez Finamori – que esses passos da legislação nacional reforçam a ideologia da substancialidade consanguínea, em contraposição à abertura a novas formas de conjugalidade e de reprodução que se avolumam em nosso horizonte.
Mas de tais contradições se faz também o nosso sistema de parentesco, tão intrincado, complexo e ‘naturalizado’ quanto o da mais remota sociedade tribal. Não basta obedecer ao mandamento da troca, é preciso fazê-lo de acordo com certos protocolos.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dumont, Louis. Introduction à deux théories d’anthropologie sociale. Groupes de filiation et alliance de mariage. Paris: Mouton, 1971.
Finamori, Sabrina. ‘Os sentidos da paternidade: dos ‘pais desconhecidos’ ao exame de DNA’. Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.
Fonseca, Claudia. ‘A vingança de Capitú: DNA, escolha e destino na família brasileira contemporânea’. In Bruschini, Cristina; Unbehaum, Sandra. Gênero, Democracia e Sociedade Brasileira, São Paulo: Editora 3, 2002.
Heilborn, Maria Luiza; Aquino, Estela M. L.; Bozon, Michel; Knauth, Daniela R. O Aprendizado da Sexualidade. Reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond/Fiocruz, 2006.
Lévi-Strauss, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes, 1976.
Luna, Naara. ‘Natureza humana criada em laboratório: biologização e genetização do parentesco nas novas tecnologias reprodutivas’. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, n.12, pp. 395-417, 2005.