O visionário Peter Mitchell

Uma característica admirável dos grandes pensadores é a aguda intuição, que eventualmente se manifesta como se premonição fosse. Uma leitura atenta de Paris no século 20, texto escrito em 1863 pelo francês Júlio Verne (1828-1905), evidencia uma clarividente referência à nossa atual rede mundial de computadores.

Em 1905, orientado apenas pela sua audaciosa intuição, o físico alemão Albert Einstein (1879-1955) imaginou, para explicar o efeito fotoelétrico (ejeção de elétrons que ocorre em determinados materiais quando um tipo de radiação atinge sua superfície), que a luz era composta de partículas, vinte anos depois denominadas fótons.

Uma característica admirável dos grandes pensadores é a aguda intuição

O fenômeno, resumido em uma equação de estonteante simplicidade, permitiria a medida da constante de Planck, formulada cinco anos antes pelo físico alemão Max Planck (1858-1947) apenas como um artifício matemático para explicar a radiação de corpo negro (ou radiação térmica, emitida por qualquer corpo a partir de sua energia interna).

Para muitos cientistas da época, incluindo o próprio Max Planck, a explicação de Einstein não passava de especulação. Um desses incrédulos, o respeitável físico estadunidense Robert Andrews Millikan (1868-1953), dedicou dez anos de trabalho a testar a equação de Einstein, com absoluto ceticismo em relação à sua validade. Esse trabalho resultou na precisa medida da constante de Planck, o que lhe valeu o Prêmio Nobel de Física de 1923, dois anos depois de Einstein ser laureado, pela explicação do efeito fotoelétrico.

Não tenho receio de afirmar que o bioquímico britânico Peter Dennis Mitchell (1920-1992) pertence a essa estirpe de visionários. Em 1961, ele publicou um artigo antológico, no qual propôs a hipótese quimiosmótica para explicar o mecanismo de transferência de energia em sistemas biológicos. Foi esse trabalho a principal justificativa da Real Academia de Ciências da Suécia para conceder-lhe o Prêmio Nobel de Química de 1978.

Prótons, elétrons e membranas

Há cinquenta anos, a ideia corrente era de que as reações químicas nos sistemas biológicos se davam por trocas de prótons e elétrons que ocorriam de forma quase localizada, entre moléculas em contato ou próximas umas das outras.

Mitchell lançou a revolucionária hipótese de que o processo de transferência de energia resultante de reações bioquímicas tinha que depender de um mecanismo de transporte químico através de membranas biológicas. Esse mecanismo ficou conhecido como metabolismo vetorial, em referência ao fluxo molecular nos organismos biológicos. A hipótese foi baseada em resultados de estudos com mitocôndrias (organelas celulares essenciais para a respiração das células), mas hoje é sabido que se trata de um comportamento universal.

Um exemplo é o que ocorre na fosforilação oxidativa, um mecanismo metabólico essencial para a vida e pelo qual a energia liberada na oxidação de nutrientes é usada para produzir trifosfato de adenosina (ATP), a principal moeda de troca de energia nos sistemas biológicos.

Molécula de ATP
Segundo a hipótese quimiosmótica, a molécula de ATP (acima), que armazena energia proveniente da respiração celular, é produzida por meio de um processo no qual um próton atravessa a membrana lipídica de uma molécula de ADP para interagir com ela. (ilustração: Ben Mills/ Wikimedia Commons)

Antes da hipótese quimiosmótica, sabia-se que os elétrons liberados na oxidação passam por uma cadeia molecular até encontrarem oxigênio e formarem água. É durante esse transcurso que o ATP é produzido. Acreditava-se que se tratava de um processo no qual prótons interagiam diretamente com a molécula de difosfato de adenosina (ADP) para produzir o ATP.

Ocorre que o ADP é circundado por membranas de lipídios. Mitchell então achou que essas membranas deveriam ter participação no processo. Foi aí que surgiu a hipótese quimiosmótica.

Segundo a lei da conservação de cargas (que estipula que uma partícula não pode ser criada ou destruída sem que outra de carga elétrica oposta também seja), a cada elétron liberado deve corresponder um próton livre, na verdade, um núcleo do átomo de hidrogênio.

Em princípio, essas cargas poderiam se mover aleatoriamente. Mas Mitchell sugeriu que o movimento de prótons estava acoplado ao movimento de elétrons, de modo que os prótons atravessavam a membrana biológica (daí a referência à osmose) em busca do ADP para produzir o ATP, enquanto os elétrons entravam na membrana para, em seguida, voltar ao ambiente externo, onde eles haviam sido liberados.

As membranas ficariam com excesso de carga positiva de um lado e de negativa do outro, formando uma espécie de capacitor (componente que armazena energia e acumula um desequilíbrio interno de carga elétrica).

Da rejeição à admiração

Sabe-se hoje que o processo deve acontecer assim mesmo. Por isso, a teoria quimiosmótica é conhecida como o ‘modelo padrão’ dos biólogos para o entendimento do funcionamento das células e de seus constituintes.

Mas nem sempre foi assim. No início dos anos 1960, os bioquímicos acharam que a teoria era muito complicada e tinha elementos dispensáveis no processo, como as membranas. Mitchell foi ridicularizado e passou mais de 15 anos enfrentando uma verdadeira guerra para provar experimentalmente que sua hipótese fazia sentido.

Considerando os recursos experimentais disponíveis naquela época, talvez não seja justo criticar os céticos. A hipótese de Mitchell exigia que prótons e elétrons circulassem em caminhos diferentes. Rigorosamente, para confirmar essa proposição, seria necessário o conhecimento da topologia molecular, algo impossível nos dias de então, já que nem mesmo a estrutura cristalográfica das proteínas que abriam caminho para os prótons atravessarem a membrana tinha sido determinada.

Mas, quando essas estruturas começaram a ser desvendadas, nos anos 1990, confirmando tudo o que o visionário Mitchell havia antecipado, o ceticismo passou a dar lugar à admiração pela aguda intuição desse bioquímico.

Célula combustível
Célula combustível usada pela Nasa. A proposta de que prótons e elétrons seguiam diferentes percursos ao atravessarem membranas biológicas foi inspirada na primeira célula de hidrogênio, inventada pelo físico britânico William Grove. (foto: Nasa)

Em algumas das suas publicações, Mitchell explicita elementos da sua heurística. Por exemplo, a proposta dos percursos diferentes seguidos pelo elétron e pelo próton foi inspirada na primeira célula de hidrogênio, inventada pelo físico britânico William Robert Grove (1811-1896) em 1839 (veja a coluna O combustível do século 21, de abril de 2009).

Já a ideia da composição e topologia das membranas foi trazida dos filmes finos desenvolvidos pelo físico-químico estadunidense Irving Langmuir (1881-1957) e pela física estadunidense Katharine Burr Blodgett (1898-1979) nos anos 1930.

Em 1963, acometido por uma úlcera, Mitchell foi obrigado a abandonar o cargo de professor na Universidade de Edimburgo (Escócia) e, com recursos próprios, montou um laboratório numa propriedade rural e fundou o Instituto de Pesquisa Glynn, onde trabalhou até seus últimos dias de vida, em 1992.

O legado de Peter Mitchell cria um cenário favorável para a realização de novas pesquisas sobre a mitocôndria, que foi ponto de partida para as descobertas do bioquímico. Seus notáveis avanços na determinação de detalhes estruturais do maquinário molecular, em muitos casos no nível atômico, deverão inaugurar uma nova era de interesse nessa enigmática organela celular. Só nos resta desejar que as novas gerações de bioquímicos tenham herdado pelo menos um pouco da apurada intuição de Mitchell.

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
No 11º parágrafo, a explicação mais adequada para a lei da conservação de cargas é que ela estipula que uma partícula não pode ser criada ou destruída sem que outra de carga elétrica oposta também seja – e não que a carga elétrica não pode ser criada ou destruída, como estava escrito anteriormente. (29/08/2011)