Acaba de ser publicada a tradução de um livro de Guy Deutscher pela Editora Mercado de Letras, de Campinas (SP). O livro se chama O desenrolar da linguagem. A competente tradução é de Renato Basso e Guilherme Henrique May.
O objetivo principal é descrever – e tentar explicar – um fenômeno que ocorre com as línguas humanas que talvez seja o único sobre o qual se pode ter certeza absoluta: as línguas (todas) mudam. Uma das teses de qualquer linguista é que, mesmo mudando, as línguas não degeneram.
A maioria das pessoas, mesmo que sejam sofisticadas representantes do pensamento em outras áreas, acredita que as línguas degeneram. De fato, uma das teses mais arraigadas é que a gramática (o vernáculo) é espancada diariamente. A sobrevivência do mito é curiosa. A meu ver, ela se deve, por um lado, à ignorância dos fatos e, por outro, a valores ideológicos arraigados, entre os quais a tese de que o povo sempre erra. Falando ou votando.
Esse livro deveria interessar por muitas razões. Entre as que mais merecem atenção está a enorme quantidade de fatos apresentados e analisados. Não só são retomados casos clássicos, ao menos para nós, como os ocorridos com as línguas indo-europeias, alguns dos quais são conhecidos por qualquer estudante de letras ou linguística, mas, especialmente, exemplos de diversos estágios do inglês, uma língua que, para muitos, não teria os mesmos problemas que afetam o português.
Jornalistas são os que mais ‘atestam’ esse fato, embora ele seja objeto de comentário de quase todos os ditos formadores de opinião, com a agravante de que estes se imaginam praticantes da ‘língua de Camões’, quiçá ‘de Machado’, o que é grossa mentira, e deveria fazer desconfiar, mesmo que não houvesse outra razão, da objetividade com que tratam outros fatos.
Lenta mudança em curso
O livro aceita a hipótese, apresentada às vezes em tom irônico, de que a história das línguas é uma história de erosão, isto é, do desaparecimento de numerosas marcas. Simplificando: em algum estágio, muitas línguas apresentaram, por exemplo, morfologias nominais e verbais muito complexas, que foram desaparecendo aos poucos.
Exemplo bem conhecido é o sistema de casos do latim. Nessa língua, as funções sintáticas eram marcadas na desinência das palavras, o que fazia com que cada uma tivesse cerca de uma dezena de terminações, contando o singular e o plural (idealmente, eram 12, porque as gramáticas apresentavam seis formas singulares e seis plurais, mas, de fato, algumas se repetiam, ora mais, ora menos, conforme as declinações).
Ora, línguas derivadas do latim, como o francês, o português, o espanhol e o italiano, não têm mais nenhuma dessas formas. Em português, sobraram algumas nos pronomes: eu é sujeito, me é objeto, mim vem com preposições (em mim, para mim, de mim). As gramáticas escolares registram que ele/ela é sujeito e que lhe e o/a/os/as são objetos, mas cada vez mais se ouve vi ele, deixa ele fazer. Mesmo eu aparece aqui e ali como objeto, não só no dia a dia, mas em letras de música, até mesmo de letristas cultos (beija eu, beija eu, me beija). É a lenta mudança em curso.
O mesmo ocorreu com os verbos, o que hoje é bem visível, porque o português já teve seis formas para um tempo verbal (eu amo, tu amas, ele ama, nós amamos, vós amais, eles amam), que foram reduzidas a três ou quatro: eu amo, você/ele(a)/a gente ama, nós amamos, vocês/eles amam). Mesmo quem muito lamenta o estado atual da língua não escreve “se vós amásseis”.
Caso exemplar é o futuro, que já foi hei de (amar, vender, partir); depois o verbo auxiliar virou desinência (amarei etc.). Agora está saindo de cena, e a nova forma (por favor, não mintam!) recorre a outro auxiliar: vou amar etc. Há quem diga que esse auxiliar já é um clítico, logo será um prefixo.
A tal ‘erosão’ é, para muitos, o argumento em favor da tese da decadência. Mas, como o autor mostra, as línguas encontraram outros mecanismos para marcar as funções que antes eram marcadas por casos. Por exemplo, em vez de empregar a forma ‘asino’ como objeto indireto, o português se vale de uma preposição: para o burro.
Forças da destruição
O livro apresenta muitos exemplos interessantes do inglês, do francês e, especialmente, de línguas semíticas, aos quais os tradutores acrescentaram, eventualmente, exemplos análogos do português. O leitor ganha muito se ler a obra, porque os argumentos não são repetições de clichês, mas são justificados com dados. E os dados são muitos, o que deveria ser suficiente para mudar preconceitos.
Extremamente útil seria o capítulo 3 (‘As forças da destruição’), que cita numerosos autores conhecidos que afirmaram, cada um em sua época, que sua língua (inglês ou francês – e também a nossa!) estava em estágio de rápida degenerescência.
O capítulo deveria servir para curar a humanidade da sua doença mais infantil, que consiste em imaginar que teria havido uma época em que uma língua teria sido perfeita e que há outra (a presente) na qual muita gente colabora (menos o lamentador!) para que uma língua seja destruída.
Quem se queixa disso, em geral, pensa que não contribui para tal ‘decadência’, mas não se dá conta de que, uma ou duas gerações antes, alguém considerava que a destruição vinha exatamente desses que agora pensam que estão lutando para a preservação da língua.
Afetado pelo espírito do livro, recolhi aleatoriamente construções machadianas que nem o mais velho e conservador dos escrevinhadores atuais emprega, o que é uma das maiores evidências de que as línguas mudam.
“… é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas”; “… é possível que o leitor me não creia”; “… que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou…”; “Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos…”; “Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves”; “Nunca me esqueceu este fenômeno”; “Estou com inveja aos argentinos”; “Talvez o ardor do Romantismo ajudou a incendiar as almas”; “Mas eu cuido que há de haver”; “Fui antes pio e equitativo que piedoso e justo”; “Falei então da confusão de minha alma, e devia dizer em que é que ela consistia e consiste, e cuja era a causa”; “Eventualmente, pode ser útil em defender a vida ao dono”; “About refere de um general (…) que se deixou levar dos encantos de uma moça fácil de Atenas”; “Um dos oradores do dia 21 observou que, se a Inconfidência tem vencido, os cargos iam para os outros conjurados, não para o alferes”.
Basta, eu acho. Mas sei que não vai adiantar nada.
Combate ao obscurantismo
Bons livros de divulgação são excelente arma contra a ignorância, especialmente se contêm muitos dados para sustentar suas teses e ainda mais se o autor não é um defensor fanático de nenhum ponto de vista.
É o caso de O desenrolar da linguagem. Guy Deutscher conhece o tema, fornece dados históricos e também arrisca hipóteses sobre o que não é bem conhecido, distinguindo fatos de especulações. E mesmo para estas apresenta bons e numerosos dados.
Uma de suas hipóteses, até curiosa, é que a escrita impede um movimento de criação de palavras ‘complexas’ a partir de outras mais ‘simples’ (apresenta vários casos desse tipo). Argumenta que, se não houvesse escrita, talvez começássemos a aceitar mais facilmente que são uma só palavra sequências como xovê (deixe eu ver), xacomigo (deixa comido), vambora (vamos embora), peraí (espere aí) etc.
Foi por isso que coloquei ‘oncotô’ no título. É que, a propósito de certos traços mais comuns nos dialetos mineiros, quase nos acostumamos com expressões (um pouco imaginárias e exageradas, talvez) como mastumate (massa de tomate), lidileite (litro de leite), dendapia (dentro da pia), quidicarne (quilo de carne), badacama (debaixo da cama), nossinhora (nossa senhora) etc.
É essa ‘deriva’ que leva à criação de ‘palavras’ como ‘oncotô’ (onde é que eu estou > onde que estou > onde que tô > oncotô) e ‘oncovô’ (aonde é que eu vou > onde que vou > onde que vô > oncovô). Onqotô é, inclusive, com esta escrita publicitária, o nome de uma extraordinária montagem da companhia de dança Corpo, de Belo Horizonte.
Veja aqui um trecho do espetáculo Onqotô
Há muitas coisas que não sabemos. Mas já poderíamos saber tantas, que é espantoso ver repetidos, em relação às línguas – especialmente sobre variação e mudança –, tantos clichês que desprezam evidências históricas, algumas das quais acontecem diante de nossos olhos. E teimamos em tachá-las repetida e simplesmente de erros.
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas