Os barbudos de Hobsbawm

Hesitei em ser mais uma a homenagear Eric Hosbawm (1917-2012), talvez o historiador mais influente dos nossos dias, na coluna deste mês. Mas, como poderia ser diferente?

Admirado no mundo inteiro, Hobsbawm goza de prestígio ímpar no Brasil. Ninguém pode estudar história contemporânea sem ler a série das Eras (A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios e A Era dos Extremos). Por isso mesmo – o Tony Judt que me desculpe – Hobsbawm não será lembrado como ‘o historiador comunista’, e sim como ‘o’ historiador do mundo contemporâneo. Se Hobsbawm é lido, é porque seus livros são bons, independentemente de qualquer empatia política que possa haver – não há, a priori – com seus leitores.

Hobsbawm não será lembrado como ‘o historiador comunista’, e sim como ‘o’ historiador do mundo contemporâneo

Em recente texto na Folha de São Paulo, em que rememora a convivência com o historiador na década de 1970, Marcos Gasparian lembra de uma vez em que, depois de passar uma temporada em sua casa no Rio, Hobsbawm teria pedido desculpas a seu pai, Fernando Gasparian, então seu editor no Brasil, por não ter trabalhado o suficiente aqui: “Como você sabe, o Rio e a casa dos Gasparian não encorajam o trabalho”.

Se o Rio não encorajava o trabalho de Hobsbawm, o inverso acontecia: naqueles tempos difíceis, ele era referência para uma geração inteira de estudantes universitários, os ‘amigos barbudos’ da irmã de Gasparian, que viam na história um caminho para mudar o mundo para melhor. Um deles era Ricardo Salles, então aluno da PUC, hoje meu companheiro de sala e projetos no Departamento de História da Unirio. É dele o texto que segue. 

Superação através da história

Ricardo Salles“Eu fui um dos barbudos, ainda que com a barba bem mais rala, amigos da Helena Gasparian, que o Marcos fala na matéria. Mas, infelizmente, não estive entre os que chegaram a conhecer Hobsbawm pessoalmente. Conheci pelo livro A Era das Revoluções, de uma edição espanhola do início dos anos 1970 ou fins de 1960. Fui apresentado à obra em um curso de história moderna ou contemporânea, no segundo semestre de 1972, dado por Jacques Alvarenga.

Foi o curso que mais marcou minha formação. Eu tinha acabado de ser preso, no início de 1972. Depois de um mês ou um pouco mais, fui solto. Tranquei a matrícula e só voltei para a faculdade no segundo semestre. Estava bastante deprimido e com a decisão de me dedicar ao que se chamava na época de ‘prática teórica’, seguindo as reflexões de Althusser. Se não me engano, só me matriculei em dois cursos. Era o que dava para fazer, em termos psicológicos. O outro curso, não me lembro qual e como foi.

O do Jacques, sim. Se o curso não foi todo sobre Revolução Francesa, foi quase. Ele dividiu a turma em grupos de apresentação de seminário. Cada grupo, ou talvez até dois, já que era uma turma grande, ficou encarregado de apresentar um trabalho escrito e oral sobre uma das fases da revolução. Nosso grupo ficou com a fase dos jacobinos.

Jacques nos apresentou uma extensa bibliografia. Entre outros, Georges Lefebvre, Jacques Godechot, Robert Palmer, Labrousse, Soboul e Hobsbawm. Li alguma coisa de quase todos, mas principalmente Lefebvre, que tinha já uma edição em português de 1966, e Hobsbawm. O Jacques era um professor entusiasmado e admirava o livro do Hobsbawm, com sua análise de conjunto, sua relação entre os processos revolucionários do final do século 18 e a Revolução Industrial. Eu também.

Aquele foi o melhor curso que fiz. Tinha uma compulsão de ler toda a bibliografia, sobre todos os períodos da revolução, não apenas a parte dos jacobinos. Tinha tempo e as leituras tomaram conta de mim. Hoje é fácil perceber que eu substituía o ânimo militante, que a prisão me quebrara, pela obsessão intelectual aplicada a um período revolucionário da história. Jacques e Hobsbawm me ajudaram muito nesse processo que foi crucial para que eu mantivesse um mínimo de equilíbrio.

Anos de chumbo
O historiador Ricardo Salles relembra momentos difíceis vividos durante os anos de chumbo e os acontecimentos que levaram ao assassinato de Jacques Alvarenga, professor que marcou sua formação e que lhe apresentou à obra de Hobsbawm, que o acompanha até hoje. (foto: reprodução)

Os tempos seguiram difíceis no semestre seguinte, com antigos colegas sendo perseguidos e alguns presos. Eu e outros companheiros tínhamos que nos apresentar todas as semanas no Ministério do Exército e aguardávamos julgamento em liberdade. No começo de 1973, fomos finalmente julgados e absolvidos pela Justiça Militar.

Em maio, soubemos que Jacques fora preso. Pouco se falava no departamento de história sobre isso, ao menos abertamente. Na maior parte do tempo de sua prisão, ele permaneceu sendo torturado em casa, na presença de sua mãe. Queriam que ele entregasse um militante da ALN [Aliança Libertadora Nacional] com quem tinha contato. Acabaram chegando a esse militante, Merival de Araújo, na época com 24 anos (um a mais do que eu tinha na época).

A versão que chegou a nós foi que ele entrou em contato com Jacques e que, mesmo sem este ter dito uma senha que tinham combinado para significar que estava tudo bem, foi encontrá-lo. Merival foi preso, torturado e assassinado. Pouco depois, Jacques foi solto. Não tive força moral e coragem de visitá-lo. Sabia dele pelo Caú, meu colega que o visitava em casa.

Um dia, em junho de 1973, chegou a notícia de que Jacques fora assassinado em uma sala do colégio Veiga de Almeida na Tijuca, onde ele lecionava. A versão que correu, e que depois se confirmou, é que fora ‘justiçado’ pela ALN. 

Restou o Hobsbawm, que, com seus livros, me acompanhou depois e me acompanha ainda

Nunca esqueci o Jacques e o Hobsbawm. O nome de Jacques, juntamente com os de Aquino, Oscar e Denize, ainda circula no livro didático História das sociedades, que escreveram juntos e publicaram naquele mesmo ano de 1973.

Na rede, tudo que consigo achar sobre ele é em um site de extrema-direita. Lá vejo a foto de seu cadáver ensanguentado no chão do Veiga de Almeida. Não vejo seu rosto inteligente e muito menos seu sorriso jovem, sua vivacidade intelectual, tudo que ajudou a me aguentar naquele tempo difícil. Pena. Restou o Hobsbawm, que, com seus livros, me acompanhou depois e me acompanha ainda.”

Em tempo

Para essa geração que, para parafrasear o próprio Hobsbawm, tentou ir além de seus próprios interesses imediatos, mesmo com as desilusões que se seguiram, talvez seja um alento ver que o último livro de Hobsbawm se chamou Como mudar o mundo (Cia. das Letras, 2011).

Keila Grinberg
Departamento de História 
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro