O colunista, flagrado em um momento de megalomania, carregando a sua ansiosamente esperada e controvertida lista dos cinco melhores momentos genéticos de 2007.
Janeiro é um mês estranho. Estamos em um novo ano, mas as memórias são todas do ano que passou. Por isso, os romanos deram a este mês o nome de Janus, o Deus de duas faces. Uma delas está voltada para frente e a outra para trás; uma, examinando o passado, e a outra, mirando o futuro.Aliás, isso me lembra um aforisma do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855), que aborda um dos paradoxos da existência humana: “A vida só pode ser entendida retrospectivamente, mas deve ser vivida prospectivamente.”
Tanto retrospectivamente quanto prospectivamente, os meses de dezembro e janeiro são cheios de listas. Onde quer que olhemos há listas dos principais eventos e personalidades de 2007 e listas de previsões e resoluções para 2008. O número de 24 de dezembro da revista norte-americana Time comete a extravagância de apresentar uma metalista, ou seja, uma lista das dez melhores listas de 2007!
No mesmo número da revista, há um interessante artigo do jornalista norte-americano James Poniewozik intitulado ‘The power of 10’ (A potência de 10), que discute a razão de as listas serem tão populares e terem sempre dez itens. Ele apresenta os dez principais motivos para isso, em ordem decrescente, à la David Letterman. Vamos lá:
10) Deus já deu o exemplo, fazendo uma lista de 10 mandamentos
9) As palavras não estão com nada – os números estão com tudo!
8) Listas são fáceis de colocar na internet
7) Listas são ótimos mecanismos para vender idéias e conceitos
6) Listas estimulam discórdia e discussão
5) Listas nos dão uma chance de fazer justiça
4) Listas nos ajudam a lembrar (e esquecer) – fazer um instantâneo do passado
3) Porque o universo é aleatório e sem sentido e nós queremos impor a nossa ordem
2) Porque a vida é curta e queremos marcar a nossa presença fazendo listas
1) Porque, contanto que o texto contenha números, as pessoas lerão qualquer coisa, por mais trivial e insípida que seja, do começo ao fim!
Dito isso, eu, no meu melhor espírito iconoclasta, apresento nesta coluna uma lista personalíssima dos cinco (sim, apenas cinco!) melhores momentos genéticos de 2007.
Por que apenas cinco? A resposta é simples: não consegui achar 10!
Apertem os cintos. Aqui vai a minha lista:
A capa da revista Nature de 19 de julho de 2007 anuncia o trabalho de Yamanaka e colaboradores com o festivo título ‘Uma nova maneira de clonar’.
Melhor momento n. o 1
O destaque número um vai para o sucesso do grupo do médico japonês Shinya Yamanaka, da Universidade de Quioto (Japão), em ‘desdiferenciar’ células adultas, transformando-as em células-tronco pluripotentes, pela transdução de genes específicos. Em julho de 2007, esses pesquisadores publicaram na Nature que células-tronco pluripotentes podiam ser obtidas de fibroblastos de camundongos adultos pela introdução de quatro genes (Oct3/4, Sox2, c-Myc e Klf4) e pela subseqüente seleção para expressão do gene Nanog. Essas novas células-tronco eram capazes de gerar qualquer tipo de tecido e até mesmo formar embriões de camundongos inteiros.
Posteriormente, no número de 30 de novembro do periódico Cell, eles mostraram que o mesmo procedimento funciona perfeitamente também com fibroblastos humanos. Aliás, a equipe japonesa já publicou os protocolos detalhados na Nature Protocols de 29 de novembro de 2007. O trabalho de Yamanaka e colaboradores traz perspectivas de se obterem células-tronco pluripotentes de qualquer pessoa a qualquer hora. Abrem-se, assim, as portas da medicina regenerativa personalizada.
Um dos problemas iniciais que se apresentaram foi o fato de um dos genes introduzidos, o c-Myc, ser um oncogene, capaz de induzir a formação de tumores. Mas, na Nature Biotechnology de 30 de novembro de 2007, o grupo mostrou novos resultados, que revelavam a possibilidade de formação de células-tronco sem a introdução do c-Myc.
Um ponto importante a respeito dos resultados de Yamanaka e colaboradores é o fato de a técnica deles já ter sido reproduzida e sacramentada por alguns grupos norte-americanos, que, por causa do bairrismo da imprensa ianque, acabaram sendo mais citados que os próprios japoneses. Mas não há dúvida sobre quem é o dono dessa praia. Aguardem as listas do Prêmio Nobel nos próximos anos!
Melhor momento n. o 2
Vale a pena lembrar o primeiro relatório do projeto-piloto Encode (sigla em inglês para Enciclopédia de Elementos do DNA), publicado na edição de 14 de junho de 2007 da revista Nature e já discutido em uma coluna anterior . Os resultados do Encode representaram um verdadeiro ventilador na farofa da genômica humana e, por que não, de toda a genética, pois subverteram muitos dos conceitos antes tidos como certos. Estamos aguardando ansiosamente pelos capítulos subseqüentes da novela e lidando com uma pergunta fundamental: afinal, o que é um gene?
A revista Wired de 15 de dezembro de 2007 celebrou em sua capa a era da genômica de consumo.
Melhor momento n. o 3
A evolução do seqüenciamento genômico de consumo foi outro marco. Em maio de 2007, foi amplamente noticiado que os genomas dos cientistas norte-americanos James Watson (1928-) e Craig Venter (1946-) haviam sido completamente seqüenciados. O genoma de Venter foi posteriormente tema de um artigo na PLoS Biology . Mais recentemente, uma empresa privada norte-americana chamada Knome anunciou que está seqüenciando o genoma de qualquer pessoa que esteja disposta a pagar a bagatela de 350 mil dólares.
Certamente, para o seqüenciamento genômico humano chegar ao grande público como ‘bem de consumo’, o preço vai ter que ser bastante reduzido. Um passo de enorme importância nessa direção foi tomado pela Fundação Prêmio X ( X Prize Foundation, em inglês), que anunciou um prêmio de 10 milhões de dólares ao primeiro laboratório que conseguir seqüenciar 100 genomas humanos em dez dias. Certamente a metodologia que terá que ser desenvolvida para conquistar esse prêmio será bastante mais accessível em custo. Vale a pena assistir ao vídeo sobre o Prêmio X de Genômica que está no YouTube .
Mais modestamente, algumas companhias estão oferecendo genotipagem em massa diretamente ao consumidor . O serviço mais completo me pareceu ser o deCODEme, da empresa islandesa deCODE Genomics, que está oferecendo a genotipagem de 1 milhão de polimorfismos genômicos (SNPs) por 985 dólares. Por esse preço, deCODEme realiza uma avaliação de risco genético para 20 doenças comuns.
Eu me aventurei a ser genotipado por eles e estou aguardando meu perfil. Pelo meu código, parece que sou o exame número 12.164 que eles fazem. Nada mau para quem começou há menos de três meses. Em uma coluna futura descreverei minhas impressões sobre os resultados que vou receber.
Melhor momento n. o 4
Foi um alento observar o imediato e vigoroso repúdio da imprensa e de toda a sociedade às desastradas declarações racistas do famoso biólogo e nobelista James Watson. Lembro aqui que ele afirmou em outubro estar preocupado com o futuro da África, porque os habitantes daquele continente, sendo menos inteligentes que outros povos, eram incapazes de resolver seus problemas. Essa declaração estapafúrdia está totalmente na contramão de tudo o que a genética tem demonstrado, ou seja, que raças humanas não existem do ponto de vista biológico. O repúdio geral ao celebrado cientista mostra que o fato científico da inexistência das ‘raças’ humanas está finalmente sendo absorvido em nossa cultura e incorporado às nossas convicções e atitudes morais.
Melhor momento n. o 5
Quase ao apagar das luzes de 2007 apareceu no periódico PNAS, da Academia de Ciências dos Estados Unidos, uma jóia de artigo. O autor principal é o notável geneticista de populações Masatoshi Nei (1931-), que nasceu no Japão, mas está radicado há muitos anos nos Estados Unidos. O artigo, que parece ter passado despercebido pela imprensa científica brasileira, é intitulado ‘Deriva genética e variação do número de cópias dos genes de receptores sensoriais em humanos’ e está acompanhado de um excelente comentário editorial escrito pelo geneticista Jianzhi Zhang e intitulado ‘Genoma humano à deriva’ .
O artigo de Nei examina aspectos da chamada variação de número de cópias (VNC) no genoma humano. Nos últimos anos, têm sido caracterizados polimorfismos genéticos do número de cópias de certas regiões genômicas, algumas das quais contêm genes expressos. Nei e associados examinaram especialmente a variação do número de cópias de genes de receptores sensoriais. Os resultados mais interessantes foram com os genes de receptores olfativos, que apresentam cerca de 800 cópias no genoma. Eles descobriram que 30% dessas cópias são polimórficas quanto a número entre indivíduos diferentes! De fato, uma pessoa pode ter 100 genes de receptores olfativos a mais que outra!
O número de genes de receptores olfativos deve ser estritamente determinado por fatores seletivos, diriam muitos imediatamente. No, sir! Tanto no artigo original quanto no editorial, os autores apresentam fortes evidências de que esse polimorfismo de número de cópias é estritamente neutro e sujeito às forças aleatórias da deriva genética!
Finalizo com a clássica terminação dos desenhos animados da Warner Bros.: That’s all folks! Feliz 2008 para todos!
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
11/01/2008