Os pesticidas e o declínio das abelhas

As abelhas estão sumindo. Os apicultores foram, naturalmente, os primeiros a soar o alarme, ainda nos anos 1990. Colmeias vazias e prejuízos motivaram alguns estudos pouco conclusivos que apontavam patógenos como fungos e vírus e também pesticidas como possíveis culpados. O fenômeno ganhou até nome, ‘Transtorno do Colapso da Colônia’ (CCD, na sigla em inglês), e foi particularmente devastador nos Estados Unidos em 2007.

Mas, no início deste ano, dois estudos publicados na Science apontam os pesticidas como causadores do declínio observado em colônias de abelhas e outros insetos. Um deles, realizado por pesquisadores de universidades inglesas, analisou os efeitos de pesticidas em zangões. O outro, coordenado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica da França (Inra, na sigla em francês), examinou os efeitos de pesticidas na capacidade de navegação das abelhas.

Soube desses estudos quase por acaso, ao pesquisar material para a coluna anterior. Busquei hoje “pesticidas e abelhas” no site do Globo e não achei menção aos estudos acima. Que coisa! Você estuda, estuda, pesquisa, pesquisa e depois ninguém dá bola, mesmo quando publica na Science.

Ok, os zangões são pouco carismáticos por sua propensão a se embaralharem no cabelo de senhoras e moçoilas em churrascos e outros folguedos campestres. Mas deviam nos inspirar mais respeito ou interesse, pelos serviços essenciais e gratuitos que desempenham eficiente e incansavelmente, como polinizar morangos, mirtilos e muitas outras alegrias comestíveis.

As abelhas picam e fazem mel e desempenham a mesma função polinizadora dos zangões. Tem uma estrutura social complexa, já bem descrita em desenhos animados, e uma apurada capacidade de orientação e comunicação (entre elas, claro, porque conosco está difícil). Além de tudo, são hype, já que usam diferentes tipos de dança para comunicar à galera onde está o alimento, qual é, quanto há, se está fresco ou passado e se dá barato ou não.

Mas esse show só rola se elas conseguirem achar o caminho de casa. O estudo do Inra mostra justamente que doses subletais de pesticidas de uso corrente desorientam as abelhas a ponto de elas se perderem das próprias colmeias e terem, então, poucas chances de sobreviver.

Sem eira nem beira

O estudo foi relativamente simples e objetivo, mas bem criativo. Começaram marcando 693 abelhas domésticas (nossa velha conhecida Apis mellifera) com microchips de 3 mg aderidos ao seu tórax com cola odontológica. Dividiram as abelhas em dois grupos, um exposto a um placebo, outro a 20 microlitros de solução de sacarose contendo 1,32 nanogramas do inseticida thiaméthoxame (um nanograma é um bilionésimo de grama). Detectores na entrada da colmeia monitoravam as entradas e saídas de cada uma das abelhas marcadas.

Abelha com chip
Uma das 693 abelhas marcadas com um microchip, aderido ao seu tórax com cola odontológica. A ideia era monitorá-las e ver se a exposição a um determinado pesticida teria impacto no senso de orientação dos insetos. (foto: Science/ AAAS)

Após a exposição aos tratamentos, as colmeias foram colocadas em condições de campo, onde puderam viver suas vidas normais de abelhas. Bem, na verdade, apenas aquelas expostas ao placebo, porque entre aquelas submetidas a baixas doses do inseticida, 31,6% foram incapazes de retornar ao ponto de partida.

E os zangões, já pouco privilegiados, e ainda batizados de Bombus terrestris? Foram alvo de estudo parecido, sobre os efeitos do pesticida neonicotinoide imidacloprid. Depois de expostos em laboratório, como no estudo anterior, a doses compatíveis com a exposição no mundo real, os zangões foram recolocados no campo para levar a vida de zangão que quisessem.

As colônias expostas ao pesticida tiveram menor crescimento e, muito pior, produziram 85% menos rainhas do que as colônias controle. Como apenas rainhas jovens sobrevivem ao inverno inglês, pode-se imaginar o declínio populacional que isto acarretaria no ano seguinte.

Os dois estudos dão pistas claras da ligação entre o uso e abuso de pesticidas homologados por vias tortas e o declínio severo de colônias de insetos de importância econômica crucial para a própria agricultura que esses produtos supostamente favoreceriam.

Abelhas em experimento
O grupo de abelhas expostas ao inseticida thiaméthoxame e outro grupo controle no momento do lançamento. Detectores na entrada de colmeias monitoraram as entradas e saídas de cada uma das abelhas marcadas. (foto: Science/ AAAS)

Adivinha quem decide

As pesquisas levantam também a urrante pergunta: se estudos como os descritos acima – com desenho tão simples que poderiam ter sido bolados em alguma feira de ciências de ginásio – detectam efeitos tão claros em parâmetros vitais para espécies idem, como tais pesticidas puderam ser homologados?

É a pergunta que os apicultores europeus fizeram. Janine Kievits, uma apicultora belga, integrante da Coordenação Apícola Europeia, ao ler as diretivas fitossanitárias da Uniao Europeia soube que as normas para homologação eram ditadas pela Organização Europeia e Mediterrânea para a Proteção das Plantas (EPPO, na sigla em inglês), em colaboração com a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Como a EPPO agrupa 50 países e não teria competência técnica no tema, o cuidado de elaborar os tais testes padronizados para homologação foi delegado a uma outra estrutura, a Comissão Internacional sobre Relações Planta-Abelha (ICPBR, na sigla em inglês). Criada em 1950, essa comissão tem uma estrutura quase informal e está sediada na Universidade de Guelph, no Canadá. O problema é que ela é aberta a todo tipo de participação e a indústria agroquímica está fortemente representada na mesma.

“Estávamos num ambiente muito cordial, com pessoas agradáveis que propunham coisas radicalmente inaceitáveis”

Alguns apicultores resolveram participar da reunião da ICPBR que discutiria a atualização dos testes de homologação, em Bucareste, em 2008. “Estávamos num ambiente muito cordial, com pessoas agradáveis que propunham coisas radicalmente inaceitáveis. Um dos cálculos de risco propostos equivalia a classificar como de baixa toxicidade todo produto que matasse menos da metade das abelhas após exposição prolongada. Para nós, foi estarrecedor”, contou Kievits ao Le Monde.

A delegação deixou registrados pedidos e recomendações a serem considerados no documento final do encontro. Nenhum foi considerado. Indagados sobre o fato, os porta-vozes da ICPBR informaram que as recomendações finais do grupo são selecionadas a partir de uma abordagem de consenso, através da obtenção de um acordo em sessão plenária.

Em 2008, de nove membros do grupo da ICPBR sobre a proteção (?) das abelhas, três eram assalariados da indústria agroquímica, um era ex-assalariado da Basf e outro futuro assalariado da Dow Agrosciences. Belo placar: indústria 5, resto do mundo 4.

Enquanto os testes de agroquímicos forem normatizados pela própria indústria que os fabrica, a vida de inseto vai continuar piorando, e a nossa também

Enquanto os testes de agroquímicos forem normatizados pela própria indústria que os fabrica, a vida de inseto vai continuar piorando, e a nossa também.

Ao contrário de abelhas e zangões, temos polegar opositor e tele-encéfalo desenvolvido, mas o que comemos, bebemos e ingerimos como remédio é homologado, globalmente, via mecanismos com elevada permeabilidade aos interesses corporativos, como descrito acima.

Conclusão óbvia: pouca ciência e pouca cidadania é prejudicial à saúde.

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro