Pais e filhos

Outro dia um aluno me fez uma pergunta intrigante: seria possível, com os recursos da ciência atual, conceber uma criança por meio de fertilização in vitro utilizando gametas provenientes de indivíduos do mesmo sexo, em vez de um espermatozóide e um óvulo?

Duas possibilidades poderiam ser tentadas para que um casal do mesmo sexo gerasse uma criança portadora da herança genética de ambos os parceiros: a primeira, teoricamente mais fácil, envolveria a fusão do núcleo de dois óvulos no citoplasma de um deles, dando origem a uma criança do sexo feminino. Essa menina teria assim duas mães e nenhum pai. A segunda alternativa consistiria na eliminação do núcleo de um óvulo e na introdução nessa célula de núcleos de dois espermatozóides. Para que esse último processo ocorresse, seria necessário selecionar inicialmente pelo menos um espermatozóide portador do cromossomo X, pois não há na espécie humana a possibilidade de se formar um individuo YY. Obviamente, também seria necessária a participação de uma mulher para a gestação dessa criança.

A ovelha Dolly, o primeiro mamífero a ser clonado, ao lado de seu filhote Bonnie (foto: Instituto Roslin).

A biotecnologia atual nos permite fazer coisas extraordinárias: é possível, por exemplo, retirar o núcleo de uma célula da pele de um animal adulto e inseri-lo em um óvulo cujo núcleo foi retirado. A célula resultante é colocada em um meio de cultura e, após receber estímulos elétricos e químicos, sofre uma série de mitoses. Esse processo, conhecido como transferência nuclear de célula somática, permite o desenvolvimento do óvulo como se tivesse sido realmente fecundado até formar um aglomerado com algumas dezenas de células. Esse grupo de células pode ser inserido manualmente no útero de uma mãe de aluguel e, após um período de gestação, gerar um descendente clonado. Mesmo que você não conheça esse processo, decerto já ouviu falar de seu maior êxito: a ovelha Dolly.

A primeira tentativa bem sucedida de clonagem de um mamífero utilizando células adultas foi realizada em 1996 por pesquisadores do Instituto Roslin, na Escócia, sob a chefia do embriologista inglês Ian Wilmut. Embora essa ovelha (e seus criadores!) tenha sido tratada como celebridade pela imprensa, deve ser lembrado que foram feitas 276 tentativas até que nascesse Dolly e que ela teve de ser sacrificada prematuramente em 2003 devido a problemas relacionados com um processo de envelhecimento precoce.

A fecundação in vitro utilizando núcleos de gametas de um mesmo sexo, cuja possibilidade pode parecer ser mais simples, ainda não foi tentada. Por um lado, essa perspectiva suscita muitas discussões éticas: além de envolver experimentos com seres humanos, alguns poderiam argumentar que a obtenção de um filho por dois indivíduos do mesmo sexo seria moralmente condenável. Além desse debate, tal empreitada hoje seria inviável devido a alguns obstáculos metodológicos ainda não superados.

Diferenças entre óvulos e espermatozóides
Há uma enorme diferença de tamanho entre os espermatozóides e os óvulos: os gametas femininos ocupam uma área cerca de 85 mil vezes maior do que os espermatozóides que os fecundam. Existem ainda várias outras diferenças entre esses gametas que oferecem obstáculos a uma tentativa de gerar uma criança a partir de pais do mesmo sexo. Uma primeira complicação é o fato de os cromossomos não estarem empacotados da mesma forma nessas células: nos espermatozóides, eles estão muito mais compactados, de forma a aumentar a mobilidade dessas células.

A arte ilustra a associação da molécula de DNA com histonas para formar a cromatina. O empacotamento da cromatina segue padrões diferenciados em óvulos e espermatozóides (arte: Richard Wheeler/Zephyris).

Espermatozóides e óvulos também apresentam marcadores epigenéticos diferentes que controlam a expressão dos genes sem causar modificações na seqüência de bases do DNA. Entre esses marcadores estão os padrões de metilação (ligação de grupos metil – CH 3 ) da cromatina, além da produção de transcritos de RNA que controlam o padrão de expressão gênica.

Uma vez que esses processos bioquímicos controlam a ativação ou inibição dos genes, eles estão associados com a diferenciação celular. Em outras palavras, eles são a chave para que os seres humanos sejam organismos multicelulares formados por mais de duas centenas de tipos celulares diferentes. Todas essas células surgiram a partir de um zigoto e, por isso, possuem o mesmo material genético. A ativação diferenciada dos genes nos variados tipos celulares é que configura suas características únicas.

Marcadores epigenéticos também agem sobre as proteínas que controlam o empacotamento da cromatina. Nessas proteínas, conhecidas como histonas, o processos de metilação em conjunto com reações de acetilação (introdução de grupos acetil – CH 3 CO) e ubiquitilação (inserção de cadeias peptídicas de ubiquitina) controlam quais genes serão expressos, por meio do grau de enovelamento de regiões dos cromossomos.

Nos gametas, os marcadores epigenéticos são importantes para assegurar que ambas as células se fundam corretamente. Esses sinais epigenéticos são específicos e produzidos durante a maturação dos espermatozóides e óvulos nos testículos e ovários.

Outro problema a ser superado seria o imprinting genético, que faz com que os genes de origem materna e paterna sejam expressos de forma diferenciada. Em organismos diplóides as células somáticas possuem duas copias de cada cromossomo. Cada gene autossômico está, portanto, representado por duas cópias ou alelos que foram herdados de cada pai durante a fertilização. Para a vasta maioria desses genes, ambos os alelos se expressam simultaneamente. Em uma pequena proporção dos genes (menos que 1%), no entanto, o imprinting genético faz com que seja expresso apenas um dos alelos. Em cada caso, a definição de qual alelo será expresso dependerá de sua origem materna ou paterna.

Além disso, sabe-se que algumas etapas do desenvolvimento embrionário são controladas pelo material genético presente nos espermatozóides, enquanto outras etapas são governadas por genes dos óvulos.

Desafios e perspectivas

Um espermatozóide é injetado em um óvulo no processo de fertilização in vitro (foto: RWJMS IVF Laboratory).

Para conseguir unir gametas de um mesmo sexo, teríamos de saber como desativar o controle exercido pela marcação epigenética e pelo imprinting , de forma que as células do indivíduo gerado fossem capazes de expressar corretamente parte de seus genes, evitando o surgimento de anomalias ou mesmo a morte. Os desafios que teriam de ser superados para gerar uma criança a partir de indivíduos de um mesmo sexo mostram que isso está ainda longe de ocorrer.

Pesquisas realizadas por um grupo de cientistas australianos liderados pela embriologista Orly Lacham-Kaplan, da Universidade Monash, em Melbourne (Austrália), têm tentado criar espermatozóides artificiais utilizando material genético proveniente de células somáticas em camundongos, ratos e gado. Se essa técnica vingar, será possível que pessoas inférteis que não produzam espermatozóides ou mesmo células precursoras desses gametas possam ter filhos.

Mas daí à geração de um filho a partir de gametas do mesmo sexo há uma grande distância. E os maiores obstáculos talvez sejam de natureza ética: ainda que um dia venha a ser tecnicamente viável, será que esse seria um procedimento moralmente aceitável? Essa é uma discussão que teria que envolver não só a comunidade científica, mas políticos, religiosos e a sociedade como um todo.

De qualquer forma, resultados que tornem essa perspectiva tecnicamente possível estão muito longe de ser obtidos. Nas próximas décadas, aqueles que quiserem ter filhos deverão fazê-los da forma tradicional ou recorrer à adoção de uma das 200 mil crianças que aguardam ansiosamente por pais amorosos nos orfanatos ou abandonadas nas ruas do Brasil.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
29/06/2007

SUGESTÕES PARA LEITURA
Bobbert, M. (2006). Ethical questions concerning research on human embryos, embryonic stem cells and chimeras. Biotechnol. J. 1, 1352-1369.
Eggan, K. (2007). Dolly’s legacy: human nuclear transplantation and better medicines for our children. Cloning Stem Cells 9, 21-25.
Holmes, R., Soloway, P.D. (2006). Regulation of imprinted DNA methylation. Cytogenet. Genome Res. 113, 122-129.
Lacham-Kaplan O., Daniels R., Trounson A. (2001) Fertilization of mouse oocytes using somatic cells as male germ cells. Reproductive Biomed. Online , 3:205-211
Smith,F.M., Garfield,A.S., and Ward,A. (2006). Regulation of growth and metabolism by imprinted genes. Cytogenet. Genome Res. 113, 279-291.