Países à venda. Tratar aqui. E ali.

 
Mencionamos em nossa última coluna a cadeia alimentar e o equilíbrio que esta mantém com o ambiente físico, quando em estado natural e balanceado. Hoje mencionaremos os aspectos energéticos da cadeia alimentar e suas surpreendentes consequências ambientais e fundiárias.

Pense no destino metabólico do que você come: se você é um adulto moderado (por opção ou obrigação) tentará consumir o suficiente para manter seu peso. A matéria que você ingere será fonte de combustível para seu metabolismo, fonte de peças de reposição (eletrólitos, aminoácidos, vitaminas, micronutrientes) e de resíduos sólidos e líquidos. Se você ingere mais do que é capaz de metabolizar, ganhará peso e alimentará a próspera indústria que promete nos livrar daqueles quilinhos a mais.

As crianças, ao contrário, devem consumir mais do que o mínimo de subsistência para poder investir o saldo energético no seu desenvolvimento e crescimento. E todo pai ou mãe sabe a quantidade de comida que crianças saudáveis devoram ao longo do ano para aumentar seu peso em uma pequena fração do peso de alimento consumido no período.

Herbívoros e carnívoros têm, assim, este drama em comum: vivem direta ou indiretamente da fotossíntese dos vegetais, e enormes extensões de vegetação sustentam grandes manadas de herbívoros, que por sua vez garantem o sustento de uns poucos carnívoros. Portanto, você nunca verá grandes manadas de leões ou onças, ou revoadas de gaviões, a não ser em filmes-catástrofe de Hollywood.
Mas há um detalhe fundamental nos exemplos acima: herbívoros e carnívoros não têm livre arbítrio, a vaca nunca poderá se alimentar de frango, nem a onça de brócolis. Mas nós, os cupins do planeta, somos onívoros. Temos um largo leque de opções de dieta, do estrito vegetarianismo à carnivoria quase estrita, cada opção com uma pegada ecológica diferente.

A opção carnívora é a que exerce a maior pressão sobre o ambiente, traduzida em maior consumo de recursos como terra e água, entre outros, emissão de carbono etc. Mas as diferentes opções carnívoras podem diferir enormemente em sua pegada ecológica. Produzir um quilo de frango requer uma superfície e uma quantidade de água muito menor do que produzir um quilo de carne de boi.

Você acaba de entender por que um quilo de frango é mais barato do que um quilo de carne e mais caro do que um quilo de soja. Também entendeu por que um país como a Argentina, até recentemente grande produtor, consumidor e exportador de carne, tem densidade populacional muito menor do que a China, de hábitos basicamente vegetarianos.

Biosfera finita
Ouvimos cada vez mais que o atual consumo de recursos naturais pelos humanos não é sustentável e que mantê-lo só seria possível com uma biosfera e meia, ou duas. Então, se nos tornarmos todos vegetarianos da noite para o dia, estará resolvido o problema e a Terra poderá sustentar mais algumas décadas ou séculos de crescimento populacional. Certo?

Aí está o problema: não há como fazer pastagens de três andares, nem fabricar água ou solo. O universo talvez seja infinito, mas a biosfera, com certeza, é finita. Então, serão quantas décadas, e quanto crescimento populacional? Onde? E com que qualidade de vida?

Vista aérea do vale fértil do rio Nilo circundado pelo deserto, no Egito. A escassez de água é uma das principais ameaças à segurança alimentar em escala global.

Por isso a questão da segurança alimentar frequenta cada vez mais as agendas políticas nacionais e internacionais. O aumento dos preços dos alimentos no início de 2008 provocou graves distúrbios em diversos países em desenvolvimento. A disponibilidade de terra e água e a capacidade de produzir alimentos são mais do que nunca uma questão estratégica.

Não basta ter recursos para importar alimentos produzidos em outros países, já que, em caso de escassez ou crise, esses países se recusarão a exportar. Portanto, para assegurar o suprimento alimentar, torna-se necessário ter algum controle sobre o seu ciclo produtivo.

Desta forma, está em curso, nem tão silenciosamente, uma corrida às terras e mananciais de água, estejam onde estiverem. Particulares, empresas e governos estão comprando ou arrendando grandes extensões de terra em países como Argentina, Senegal, Uganda, Indonésia, Madagascar, Sudão, Etiópia e, dizem as más línguas, Brasil.

Atrás do balcão, países que ainda dispõem de grandes extensões de florestas, terras agrícolas degradadas ou subexploradas. E na fila de candidatos à compra? Países ricos, com muita população, alto consumo e pouca terra arável, como Coreia do Sul e China, e países muito ricos com nenhuma terra arável, como os chamados países do Golfo Pérsico.

Madagascar, Camboja, Senegal
A busca por novas terras não é nenhuma novidade, mas a intensidade atual do fenômeno e sua extensão global o são. Assim o Sr. Hong Yong-Wan, um dos responsáveis da Daewoo Logistics, o braço agrícola do gigante coreano Daewoo, empresa que conhecemos como montadora de automóveis, declara “em nosso mundo, a comida pode ser uma arma”. Brrrr… nunca mais olharei minha inocente (?) marmita com os mesmos olhos depois disso!

Mas essa declaração talvez explique por que a Daewoo arrendou 1,3 milhão de hectares em Madagascar – metade da superfície arável do país – por 99 anos. Pretende produzir ali 4 milhões de toneladas de milho, ou um terço da atual importação de milho da Coreia do Sul, e até 500 mil toneladas de óleo vegetal. Ambos para consumo… na Coreia do Sul.

A empresa não pagará um tostão sequer pela locação das terras; a contrapartida será investir 6 bilhões de dólares em benfeitorias nas terras em questão, ao longo de 25 anos. Talvez isso melhore as condições de vida da população local, talvez não. Pena: 70% da mesma está abaixo do nível de pobreza e metade da população infantil até 3 anos de idade sofre de desnutrição.

Já os países do Golfo Pérsico têm fortunas oriundas do petróleo e grandes territórios, mas o clima é desértico e eles importam de 70 a 90% dos alimentos que consomem. Como garantir o abastecimento interno nessas condições? Com petrodólares na mesa. Khalil Zainy, um executivo saudita, diz o seguinte: “temos projetos no Sudão, Indonésia e Senegal. São acordos em que todos ganham: eles têm as terras, e nós, o dinheiro”. Não é de se estranhar que a FAO – o braço das Nações Unidas para agricultura e alimentação – já fale em “neocolonialismo agrário”.

Agricultores trabalham na colheita do gergelim, importante ingrediente da culinária chinesa. O país exporta mais de metade do gergelim que consome (700 mil toneladas/ano).

O Camboja, por sua vez, com sua razoável extensão e população encolhida pelos genocídios do Khmer Vermelho, está sendo cortejado pelo Kuwait e pelo Qatar. Estão em jogo ali 2,5 milhões de hectares.

Mas a China é o maior pesadelo de qualquer neocolonialista agrário. Tem um quarto da população mundial e apenas 7% das terras aráveis do planeta. Para piorar, a industrialização e a urbanização reduziram a sua superfície arável em 8 milhões de hectares em apenas 10 anos, e a desertificação avança em muitas regiões do país. Quem vai então alimentar a China? Outros países, claro!

E é impossível pensar em comida chinesa sem gergelim em suas várias formas. Mas a China consome 700 mil toneladas de gergelim e só produz 300 mil. A solução da Datong Trading Entreprise foi assumir a gestão de 35 mil hectares disseminados no Senegal, cuja produção integral de gergelim será adquirida por ela, cabendo-lhe também determinar o preço da safra. Obviamente, toda a produção será exportada para a China. Cinquenta supervisores em motos circularão nas regiões produtoras para assegurar que não haja desvios. Afinal, Arábia Saudita e Índia também são vorazes compradores de gergelim.

Banco Imobiliário Agrário
Lembra aquele jogo, o Banco Imobiliário? Cada jogador iniciava a partida com uma certa quantia inicial pré-determinada de dinheiro, jogava dados e tomava decisões sobre comprar ou vender bens, a fim de aumentar sua fortuna. E, depois da partida, um lanche, um mergulho, um joguinho de futebol.

Mas esse Banco Imobiliário Agrário, não sei não, acho que não vai acabar bem… Afinal, ele é para valer, os jogadores não têm a mesma quantia inicial e os dados são meio esquisitos. Quem vai pagar o lanche?


Jean Remy Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
16/01/2009