Para além dos ossos

“Pode remover.” Esta foi a ordem dada por um pesquisador nos anos 1970 a seu preparador de fósseis, que trabalhava em um exemplar coletado na Bacia do Araripe, no nordeste do país.

“Mas, professor, esse material esbranquiçado é diferente da matriz sedimentar…” De nada adiantou a lamentação do técnico; o pesquisador se manteve firme na sua orientação.

Hoje se sabe que aquela substância não era uma simples variação da rocha sedimentar, algo que às vezes ocorre em exemplares contendo fósseis. Tratava-se de fosfato de cálcio, cujo estudo detalhado provou representar uma rara forma de preservação de músculos fossilizados com milhões de anos.

Esse não foi o único engano do tipo registrado na história da paleontologia. Diversos exemplares do famoso depósito de Solnhofen, na região sul da Alemanha, tiveram o tecido mole ‘arrancado’ durante a sua preparação, muitas realizadas no final do século 18 e no início do século 19. Verdadeiras raridades que passaram despercebidas por dezenas de anos de pesquisa…

Couro e músculos

Como podemos encontrar em praticamente todos os livros que abordam os fósseis, o que se costuma preservar são as partes duras do organismo. No caso dos vertebrados, estas são compostas por ossos e dentes. Tal limitação está relacionada à própria natureza da formação de um fóssil, em que as partes moles – ou seja, couro, músculos, vasos sanguíneos e órgãos internos – são decompostas facilmente.

Algumas vezes é possível perceber que não apenas os ossos estão presentes nos fósseis

No entanto, algumas vezes é possível perceber que não apenas os ossos estão presentes. Um dos primeiros achados de tecidos moles fossilizados, que chamou muita atenção na época, foi feito pelo lendário coletor de fósseis, Charles Sternberg (1850-1943), em Wyoming, Estados Unidos, no início do século 20.

Ele encontrou um dinossauro herbívoro com parte do couro preservada, material que se encontra em exposição no Museu de História Natural Americano. Outros exemplares desses dinossauros com essa mesma preservação têm sido encontrados na América do Norte, muitos dos quais noticiados com bastante entusiasmo.

Em todas essas descobertas, foi registrada a impressão do couro do animal, resultante do contato entre o seu corpo e o sedimento que o recobriu.

Outra descoberta de destaque foi a do nosso dinossauro Santanaraptor placidus, procedente justamente da Bacia do Araripe, do mesmo depósito (denominado Formação Romualdo) daquele fóssil mencionado no início da coluna. Essa região é tão importante do ponto de vista paleontológico que está sendo desenvolvido ali o primeiro geoparque da América do Sul.

'Santanaraptor placidus'
Reconstituição do dinossauro brasileiro ‘Santanaraptor placidus’. Além dos ossos, vasos sanguíneos, couro e fibras musculares foram preservados em seu fóssil. No detalhe, fotos realizadas no microscópio eletrônico de varredura revelam parte dessas estruturas. (imagens: Kabacchi/ Flickr – CC BY 2.0 | A. Kellner/ Nature)

Diferente do material da América do Norte, esse nosso dinossauro possui estruturas preservadas em três dimensões, que resultaram não apenas da impressão de sua parte externa, mas também da substituição da matéria orgânica por minerais. Isso possibilitou a preservação de fibras musculares e vasos sanguíneos, além do couro do animal. Fato realmente espetacular, que também pode ser verificado em peixes, pterossauros e crocodilomorfos daquele depósito.

Aliás, apenas como nota, vale a pena ressaltar que fósseis com tecido mole nesse depósito são encontrados em escala bem maior do que em outros depósitos pelo mundo.

Novas técnicas

Uma vez estabelecido que partes moles dos organismos podem ser preservadas nos fósseis, pesquisadores começaram a não só prestar mais atenção nos seus exemplares, mas também a desenvolver técnicas mais refinadas que pudessem evidenciar essas estruturas.

Entre elas destaca-se a análise com microscópio eletrônico de varredura, muito usada em organismos recentes. Pode-se dizer que hoje é também comum a sua utilização em fósseis – como ocorreu no Santanaraptor –, o que permite a identificação de detalhes anatômicos que não podem ser observados com as lupas binoculares tradicionais.

Outro avanço importante foi a utilização da luz ultravioleta (UV). Essa ferramenta, além de revelar a preservação de tecido mole, permite a distinção de diferentes tipos de tecido. Um exemplo é o do pterossauro Jeholopterus encontrado no famoso depósito de Liaoning, na China, onde o emprego de luz UV revelou diferentes partes da asa do animal e fibras (as picnofibras) recobrindo o seu corpo.

'Jeholopterus'
Réptil voador ‘Jeholopterus’ encontrado na China. Imagens com UV possibilitaram evidenciar diversas estruturas diferentes de tecido mole, incluindo fibras que recobriam o corpo do animal (linhas menores e mais escuras). (imagem: Helmut Tischlinger/ Proc. Royal Society B)

Também no dinossauro Scipionyx, encontrado na Itália, a luz UV ajudou na diferenciação de órgãos internos.

Alguns equívocos

Porém, a pesquisa de tecidos moles não é fácil e algumas identificações já foram contestadas. Um dos casos mais discutidos é o do famoso ‘coração de dinossauro’, supostamente encontrado em um indivíduo de Tecelosaurus, que há 66 milhões de anos vagava pela América do Norte.

Pesquisadores observaram uma grande massa de coloração distinta abaixo das costelas, justamente na região onde deveria estar localizado o coração do animal. No entanto, estudos posteriores utilizando a tomografia computadorizada revelaram que o suposto coração trata-se, na realidade, de uma concreção que coincidentemente se formou naquele local.

Apesar dos equívocos, os pesquisadores são unânimes em afirmar que a possibilidade de preservação nos fósseis vai bem além de conchas, ossos e dentes

Outra controvérsia está na presença de vasos sanguíneos em um exemplar de Tyrannosaurus rex. Estudos preliminares apresentados no ano passado sugerem que os supostos vasos sanguíneos seriam, na realidade, o produto da ação de bactérias e não estariam relacionados a qualquer estrutura biológica do animal.

De qualquer forma, os pesquisadores são unânimes em afirmar que a possibilidade de preservação nos fósseis vai bem além de conchas, ossos e dentes. O desafio é desenvolver técnicas que possam comprovar esses achados de potencial maravilhoso para entendermos um pouco mais a fauna e flora que há milhões de anos, bem antes de nós, dominou o planeta.

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

 

Paleocurtas

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Estão abertas as inscrições para o Curso de Especialização em Geologia do Quaternário, oferecido pelo Departamento de Geologia e Paleontologia do Museu Nacional/UFRJ. O processo de seleção será realizado entre 6 e 8 de março. Mais informações na página da instituição na internet ou pelo endereço eletrônico <[email protected]>.

Entre 27 e 30 de agosto será realizado o VIII Simpósio Brasileiro de Paleontologia de Vertebrados no Recife (Pernambuco). O evento tem como finalidade reunir os pesquisadores que atuam na pesquisa de vertebrados fósseis, particularmente os que se encontram em atividade no Brasil. O prazo para enviar resumos termina agora, no dia 1º de março. Mais informações no site do evento.

Está em organização no Museo del Desierto em Saltillo, no México, o 6th International Symposium on Lithographic Limestone and Plattenkalk. Esse tipo de depósito tem a particularidade de preservar plantas, invertebrados e vertebrados, fornecendo, portanto, dados importantes para o conhecimento dos ecossistemas do passado. Mais informações sobre o evento, que ocorrerá de 4 a 8 de março de 2013, podem ser obtidas pelo e-mail: <[email protected]>.

Ignacio Cerda (Conicet, Argentina) e colaboradores acabam de publicar na Naturwissenschafen o primeiro registro de dinossauros saurópodos na Antártica. Procedente da ilha James Ross, o material se constitui de parte de uma vértebra da cauda do animal, o suficiente para o registro desses grandes herbívoros no continente.

A descoberta de um novo pterossauro da China acaba de ser publicada na Zootaxa. Trata-se de Qinglongopterus guoi, um pterossauro de cauda longa encontrado em rochas de idade jurássica da província de Hebei, na China. O estudo, liderado por Junchang Lü (Instituto de Geologia, Pequim), aumenta a diversidade de pterossauros encontrados na Formação Tiaojishan e a controvérsia de sua datação.

Apenas um lembrete: ainda dá tempo de votar na enquete sobre a descoberta publicada na coluna que mais despertou a atenção do leitor durante o ano de 2011. O prazo termina na primeira semana de abril. Participe!