Para o outro a escuridão era total…

A citação do título foi extraída de um agudo e conciso conto que o neurocientista Iván Izquierdo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, acaba de publicar sob o título “O Cego” . Um assaltante invade a casa de um cego, mas este se vale justamente da sua diferença para lidar com a situação. O conto expõe a superioridade do cego: ele viu claro; o assaltante imergiu na escuridão total.

Conhecemos bem a bengala dos cegos, talvez o mais antigo instrumento que esses deficientes físicos utilizam para melhor se conduzir no mundo. A bengala estende por mais um metro sua interação tátil com o mundo à sua volta, permitindo que os desvios ou pausas necessários sejam feitos a tempo. Também sabemos que prestam extrema atenção aos sons e sabem identificar com precisão sua origem no espaço em torno. E pelo menos já ouvimos falar no código Braille, que lhes permite ler e escrever.

O francês Louis Braille (1809-1952) e as chamadas “células” do código que leva o seu nome, com medidas em milímetros. A combinação de um ou mais desses seis pontos em alto relevo permite representar letras, números e palavras. À direita, a representação da letra S. 

O código Braille foi inventado por um cego, o francês Louis Braille (1809-1852), para representar as letras do alfabeto, números, sinais de pontuação e até palavras. Braille na verdade simplificou e adaptou um código militar daquela época, utilizado para a comunicação noturna no campo de batalha.

Cada sinal do código Braille é construído a partir de conjuntos de seis pontos em alto relevo, dispostos em duas colunas paralelas de três, o que possibilita até 63 combinações utilizando um ou mais pontos de cada conjunto. A elevação dos pontos e as distâncias entre eles são perfeitas para a discriminação precisa efetuada pela ativa movimentação das polpas dos dedos da mão. Será que a extrema habilidade e rapidez dos cegos ao ler os símbolos Braille é mesmo maior que a que teriam as pessoas dotadas de visão normal? E, caso isso seja verdade, de que modo o cérebro consegue essa proeza?

As estratégias do cérebro dos cegos
A primeira pergunta suscitou grande controvérsia no século passado, mas foi resolvida no início do século 21. Sim, os cegos apresentam maior acuidade tátil, como se pôde aferir por meio de um sistema de estimulação tátil totalmente automatizado, comparando o desempenho dos cegos com o dos indivíduos videntes. A questão então é como conseguem isso.

As técnicas de neuroimagem funcional, que detectam as áreas cerebrais ativas durante cada função realizada durante o exame, foram capazes de confirmar o que já se supunha de inferências anteriores. As áreas do córtex cerebral que nos videntes se dedicam aos estímulos visuais, nos cegos adquirem outras funções, ou seja, passam a processar informação de outros sentidos, especialmente da audição e do tato. É o que se chama, no jargão científico, plasticidade transmodal .

As regiões em vermelho indicam as áreas ativas durante a leitura em Braille, detectadas por ressonância magnética funcional. Tanto o hemisfério direito (do lado esquerdo da figura) como o hemisfério esquerdo (no lado direito) apresentam ativação do córtex visual (V) nos cegos, inexistente nos videntes. As figuras do centro representam o cérebro visto por trás. Imagem modificada de N. Sadato
e colaboradores (2002). Neuroimage , vol. 16: 389-400.

Os experimentos que comprovam esse fenômeno geralmente empregam grupos de cegos voluntários para o estudo, comparando-os com outros grupos constituídos por pessoas videntes. Pode-se ainda diferenciar o grupo dos cegos entre aqueles que se tornaram cegos mais tardiamente e os que nasceram assim ou tornaram-se deficientes na infância.

Os participantes são então levados ao equipamento de neuroimagem (ressonância magnética, mais freqüentemente) e, dentro do equipamento, são estimulados nos dedos com sinais Braille ou com letras do alfabeto comum em alto relevo. Em ambos os casos, constatou-se que, sob estimulação tátil, as várias regiões do córtex visual se tornam muito mais ativas nos cegos do que nos videntes, e mais nos cegos precoces do que nos tardios.

Mas será que neles se formam novos circuitos neurais? Parece que não, uma vez que uma fraca atividade aparece até no córtex visual dos videntes, quando estimulados através do tato ou da audição. Além disso, a maior atividade pode ser observada mesmo em cegos tardios, cuja deficiência foi adquirida após o período crítico de maior plasticidade, que ocorre antes da adolescência. A conclusão é que o treinamento e a necessidade, nos cegos, aproveitam ao máximo os circuitos “trans-sensoriais” existentes em todos nós, mas pouco utilizados.

O personagem cego de Izquierdo enfrenta o assaltante usando os sentidos que lhe restam com a máxima potencialidade de seu córtex bem adaptado. É como disse o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que se tornou cego na maturidade: “Um amontoado de pó formou-se no fundo da estante, atrás da fileira de livros. Meus olhos não o vêem. É uma teia de aranha para meu tato”. SUGESTÕES PARA LEITURA
P. Arno e colaboradores (2001) Occipital activation by pattern recognition in the early blind using auditory substitution for vision. Neuroimage , vol. 13, pp. 632-645.
D. Goldreich e I.M. Kanics (2003) Tactile acuity is enhanced in blindness. Journal of Neuroscience , vol. 23, pp. 3439-3445.
N. Sadato (2005) How the blind “see” Braille: Lessons from functional magnetic resonance imaging. Neuroscientist , vol. 11, pp. 577-582.
I. Izquierdo (2006) O cego. In: O Outro Lado da Ciência , vol. II (L. De Meis, org.), pp. 109-111. Vieira & Lent Casa Editorial, Rio de Janeiro.
H. Burton, D.G. e colaboradores (2006) Reading embossed capital letters: An fMRI study in blind and sighted individuals. Human Brain Mapping , vol. 27, pp. 325-339. 

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
26/05/2006

Leia o conto “O Cego” , escrito pelo neurocientista Iván Izquierdo