Pode uma única molécula afetar sua memória?

Você se lembra dos detalhes de uma estória que lhe contaram meia hora atrás? Um estudo nipo-americano acaba de mostrar que cinco em cada 100 pessoas encontram certa dificuldade na tarefa. Em um tour de force científico que combinou pela primeira vez testes mnemônicos com imageamento cerebral, genética e biologia celular, a equipe de Daniel Weinberger ainda explica por quê: trata-se de uma versão ’alternativa’ de um gene. Simples assim.

O gene em questão contém a receita para a produção do Fator Neurotrófico Derivado do Cérebro, ou BDNF, do nome em inglês. O fator, uma espécie de supervitamina que neurônios produzem para seu próprio consumo, seria apenas mais um de uma longa lista de substâncias que contribuem para a vitalidade e crescimento dos neurônios, se não fossem dois quês a mais. Primeiro, ao invés de ser liberado o tempo todo como outros fatores tróficos, o BDNF é tanto mais liberado pelos neurônios que o produzem quanto mais ativos eles estiverem. Segundo, o BDNF comprovadamente facilita o fortalecimento das conexões entre neurônios (as sinapses) e sobretudo as do hipocampo, região do cérebro responsável pela formação de novas memórias. Como elas supostamente se dão através da modificação das sinapses do hipocampo, qualquer alteração na entrega de BDNF às sinapses pode, ao menos em tese, afetar a memória.

Em animais de laboratório o papel do BDNF na formação da memória já havia sido comprovado: ratos cujo gene para o fator foi artificialmente eliminado ficam com dificuldade em aprender a sair de labirintos, uma das tarefas-padrão para se avaliar o funcionamento do hipocampo. E no ser humano?

Claro que ninguém vai brincar de cortar fora genes do DNA de outra pessoa para ver no que dá. Mas isso nem é preciso. A natureza se encarregou de criar versões diferentes de cada gene, como marcas de sabão em pó ou desinfetante no supermercado — com a diferença que, no caso do genoma, a versão você leva de cada gene é resultado de um processo razoavelmente aleatório ocorrido durante a formação dos óvulos e espermatozóides de seus pais. No caso do gene que carrega a “receita” do BDNF, apenas uma forma variante foi encontrada. A equipe de Weinberger, então, tratou de testar e comparar a memória de voluntários que levavam no genoma ou apenas a versão mais comum ou a variante do gene.

Resultado: nem o QI nem a lembrança de palavras de uma lista (habilidade que depende mais de outras regiões do cérebro que do hipocampo) variam conforme a versão do gene carregada por cada um. A memória semântica, para fatos, também não diferia entre os grupos. Mas dos 100 elementos de duas estórias contadas meia hora antes aos voluntários, uns 60 eram lembrados por aqueles que possuíam a versão mais comum do gene do BDNF, e apenas 40 eram recordados por quem só possuía sua variante.

Um exame de ressonância magnética funcional, que acompanha o consumo de energia por cada região do cérebro consciente, mostrou que de fato algo não ia tão bem no hipocampo dos portadores da forma variante do gene. Em uma tarefa de memória que não usa o hipocampo e, ao contrário, produz em geral sua desativação , a ativação dessa estrutura nos voluntários que possuíam apenas a versão alternativa do gene fazia o oposto: aumentava.

Se há um problema no hipocampo dessas pessoas, não parece ser uma questão de integridade dos neurônios: segundo um exame de espectroscopia que detecta a concentração de substâncias químicas específicas dos neurônios, a abundância de neurônios e sinapses parece perfeitamente normal. A diferença deveria estar em algum efeito da versão alternativa do BDNF sobre neurônios e sinapses de outro modo normais. E, aliás, como seria esse outro BDNF?

Exatamente igual ao produzido segundo a receita do gene presente na maioria das pessoas, como mostrou a análise de neurônios do hipocampo do rato forçados a fabricar o BDNF humano em cada uma das duas versões. O BDNF secretado em uns e outros é rigorosamente o mesmo. A diferença está em um pedacinho removido do fator antes de ele poder ser usado, pedacinho que, por sinal, é usado pelo neurônio para direcionar o BDNF corretamente às sinapses. Na forma variante, o sinal direcionador não funciona. Resultado: os neurônios produzem BDNF, sim — mas têm dificuldade em distribui-lo até as sinapses mais distantes e, assim, liberam quantidades apenas mínimas de um BDNF perfeitamente normal quando são ativados.

Dados os efeitos conhecidos do BDNF no fortalecimento das sinapses conforme elas são usadas, é de se imaginar que o processo não acontecerá tão facilmente no hipocampo dos portadores da versão alternativa do gene. Talvez venha daí a maior dificuldade dessas pessoas em lembrar todos os detalhes da estória que acabaram de ouvir.

O que fazer? Os efeitos, diz Weinberger, são modestos; nada que deixe a memória tão ruim a ponto de incapacitar a pessoa. Além disso, apenas um tipo de memória parece ser afetada — a episódica, que permite a recordação de eventos. E, ao contrário do supermercado, reclamar na gerência não adianta. Se você tem a versão alternativa do gene, ao menos um de seus pais também tem — e não dá para trocar por outra. Por outro lado, dificilmente a memória boa ou ruim será obra de apenas um gene. O BDNF provavelmente é apenas o primeiro conhecido com um papel na estória; outros provavelmente se seguirão, e quem possui a versão desfavorável de um pode perfeitamente possuir todas as versões favoráveis dos outros, por que não?

Mesmo assim, se você acha que pertence aos “sortudos” 5% da população que possuem somente a versão alternativa do gene do BDNF e quer fazer algo a respeito, por enquanto resta apenas reconhecer que sua memória episódica não é lá grandes coisas, e das duas uma: você pode prestar mais atenção e se empenhar em exercitá-la para ver se melhora; ou você pode apelar para o velho bloquinho de notas…

Fonte: Egan MF, Kojima M, Callicott JH, Goldberg TE, Kolachana BS, Bertolino A, Zaitsev E, Gold B, Goldman D, Dean M, Lu B, Weinberger DR. The BDNF val66met polymorphism affects activity-dependent secretion of BDNF and human memory and hippocampal function. Cell 112, 257-269 (2003).

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia