Todos os anos, na segunda semana de maio, mais de mil físicos brasileiros se deslocam para o interior de São Paulo ou, algumas vezes, para o interior de Minas Gerais. Em cidades como Águas de Lindoia, Caxambu ou São Lourenço, esses pesquisadores, há décadas, se reúnem na mais antiga e tradicional reunião promovida pela Sociedade Brasileira de Física: o Encontro Nacional de Física da Matéria Condensada. Como eu sou um desses físicos que migraram este ano para Águas de Lindoia, vou contar para vocês um pouco sobre esse fascinante ramo da física.
Física da matéria condensada é a área da física que tem mais linhas de pesquisa e que envolve mais físicos. Apesar disso, costumamos receber mais notícias sobre a física de partículas, principalmente sobre as produzidas no LHC (o Grande Colisor de Hádrons), ou das espetaculares imagens feitas pelo telescópio espacial Hubble. Entretanto, é a da matéria condensada que proporciona os mais importantes desenvolvimentos tecnológicos. Talvez a divulgação mais escassa dessa área se deva ao longo processo que em geral transcorre entre uma descoberta e sua aplicação.
Os pesquisadores que trabalham nesse campo investigam as propriedades físicas da matéria, a partir das interações entre átomos e moléculas. Utilizando as leis da mecânica quântica, do eletromagnetismo e da mecânica estatística, constroem modelos que permitem compreender os fenômenos físicos fundamentais e como estes podem se transformar em aplicações tecnológicas.
Até o começo do século 20, a compreensão das propriedades da matéria era limitada a uma descrição baseada na chamada física clássica, que tem como alicerces a mecânica newtoniana, a termodinâmica e o eletromagnetismo.
A primeira, proposta inicialmente por Isaac Newton, descreve os movimentos das partículas a partir dos efeitos das forças que atuam sobre elas. A termodinâmica, por sua vez, é um conjunto de leis que surgiram para explicar os fenômenos térmicos. Já o eletromagnetismo, consolidado por James C. Maxwell por volta de 1865, nos trouxe uma compreensão profunda dos campos elétricos e magnéticos, bem como da natureza da luz.
Com essas teorias, os físicos do século 19 acreditavam que tinham conseguido explicar toda a natureza. Entretanto, grandes revoluções científicas se seguiram e transformaram não somente a compreensão do mundo, mas também modificaram as nossas vidas.
Os primeiros passos
O ponto central para entender as propriedades fundamentais da matéria passa pela ideia do átomo. Até o final do século 19 e começo do século 20, ainda não estava bem estabelecida a existência dos átomos. Havia dúvidas entre físicos e químicos sobre se essa entidade, que ninguém conseguia ver, era o constituinte fundamental da matéria ou se era apenas um modelo para a descrição dos fenômenos físicos.
Em 1897, o físico inglês J. J. Thomson (1856-1940) observou em um tubo de raios catódicos (semelhantes aos antigos tubos de televisão) que, sob a ação de campos elétricos e magnéticos, esses ‘raios’ sofriam deflexão. Ele compreendeu que esses ‘raios’ deveriam ser um feixe de partículas carregadas eletricamente – já que estas sofrem a ação dos campos elétricos e magnéticos. Essa nova partícula fundamental foi batizada de elétron.
O elétron é uma partícula muito leve, com massa cerca de mil vezes menor do que os prótons e nêutrons – as outras partículas que constituem os átomos – e tem carga elétrica negativa – os prótons têm carga positiva e os nêutrons não têm carga. Além disso, os elétrons possuem uma outra propriedade fundamental chamada spin, que é o seu momento magnético intrínseco (Leia a coluna O spin que move o mundo).
A descoberta do elétron motivou o desenvolvimento do primeiro modelo da física da matéria condensada. O físico alemão Paul Drude (1863-1906) propôs em 1900 um modelo para explicar a condutividade elétrica dos metais, a partir dos movimentos dos elétrons. Ele imaginou que os elétrons se comportavam como se fossem partículas de um gás no interior do metal. Esse modelo, ainda baseado em conceitos da física clássica, conseguiu explicar com razoável precisão os valores medidos por essa grandeza física naquela época.
Alguns anos depois, o físico alemão Max von Laue (1879-1960) descobriu que os raios X, observados em 1895 por Wilhelm Röntgen (1845-1923), difratavam em cristais, da mesma forma que a luz difrata ao passar por um conjunto de fendas. Esse resultado indicou que os átomos deveriam estar organizados na matéria com estruturas bem definidas e periódicas, como se fossem, por exemplo, pequenos cubos interligados.
Paralelamente a essas descobertas, emergiu a mecânica quântica, uma nova física que foi logo aplicada para entender as propriedades dos materiais. Com o avanço tanto da teoria quanto dos experimentos e um imenso universo de perspectivas de aplicações, fez surgir a nossa atual sociedade tecnológica.
Aplicações por todos os lados
Ao longo do século 20, a física da matéria condensada gerou resultados impressionantes, que levaram a importantes aplicações tecnológicas. Praticamente todas as tecnologias avançadas que surgiram decorrem dessa compreensão mais profunda da matéria. Para exemplificar, vou destacar apenas algumas das descobertas mais relevantes.
Em 1911, Heike Kamerlingh Onnes (1853-1926) descobriu o fenômeno da supercondutividade em metais em temperaturas muito baixas, na ordem de -270 ºC. Quando os materiais se transformam em supercondutores, eles têm a capacidade de conduzir a corrente elétrica sem perda de energia e de expelir campos magnéticos no seu interior. A descoberta desses materiais permitiu a construção de bobinas supercondutoras que geram altos campos magnéticos. Esses campos são utilizados, por exemplo, nas máquinas de ressonância magnética e nos grandes magnetos do LHC.
Contudo, a supercondutividade somente foi compreendida no final da década de 1950, com a teoria proposta pelos físicos John Bardeen (1908-1991), Leon Cooper (1930-) e Robert Schrieffer (1931-). Utilizando os modelos da física da matéria condensada, esses pesquisadores explicaram o intrigante fenômeno. Mais detalhes podem ser conferidos na coluna de Carlos Alberto dos Santos ‘A centenária e misteriosa supercondutividade’. Por essa descoberta, esses físicos ganharam o premio Nobel de Física em 1972.
Curiosamente, anos antes, em 1948, John Bardeen, Walter Houser Brattain (1902-1987) e William Schockley (1910-1989) descobriram o chamado efeito transistor. Esse efeito, que ocorre devido à natureza quântica dos elétrons, permitiu a construção de transistores que vieram substituir as válvulas termoiônicas utilizadas nos equipamentos eletrônicos.
Esse dispositivo, que permite controlar o fluxo de corrente elétrica em um circuito, levou a uma revolução na eletrônica, pois ele é fundamental na construção dos computadores, telefones celulares, tablets entre outros equipamentos modernos. Esses pesquisadores, juntamente com William Bradford Shockley (1910-1989), receberam o prêmio Nobel de Física em 1956. John Bardeen, até hoje, foi o único cientista que ganhou dois prêmios Nobel de Física.
Esses foram apenas alguns exemplos das importantes descobertas feitas por pesquisadores que trabalham na área de física da matéria condensada. No evento que ocorreu este ano, muitos resultados apresentados talvez nunca se transformem em aplicações tecnológicas e apenas representem pequenos avanços na grande imensidão do conhecimento.
Contudo, alguns talvez possam, em pouco tempo, se transformar em aplicações importantes, como os relacionados ao confinamento de elétrons em grafeno – átomos de carbono dispostos em duas dimensões –, que podem levar a uma nova revolução nos dispositivos eletrônicos.
O encontro de físicos em eventos como este sem dúvida permite o avanço das ideias; novas colaborações surgem, ampliando ainda mais a fronteira do conhecimento.
Adilson de Oliveira
Departamento de Física
Universidade Federal de São Carlos