Qual é o tom, maestro?

“Laranja-da-China, laranja-da-China, laranja-da-Chiii-naa / Abacate, limão-doce, tangeriii-na…” Qual é a música? Acertou quem disse Hino Nacional Brasileiro . Mesmo quem não conhece essa brincadeira de criança com a introdução do hino deve ser capaz de matar a charada pelo ritmo das palavras, que trazem prontamente à lembrança a melodia da música. Bastam poucas notas em seqüência para que a melodia seja identificada.

E olha que você pode cantarolar em qualquer tom, grave ou agudo, e a melodia ainda soará como o Hino Nacional — que, aliás, existe oficialmente em dois tons diferentes. Manda a lei nº 259 de 1/10/1936 que a versão original da melodia de Francisco Manoel da Silva, no tom de Si bemol maior, seja a executada por orquestras e bandas, e que para o canto seja tocado o arranjo do maestro Alberto Nepomuceno, em Fá maior.

Mude o tom, os instrumentos, os cantores ou o maestro e, desde que as relações entre as notas sejam mantidas, a música ainda será o mesmo hino. Desafine, no entanto, e quase qualquer pessoa chiará. O truque? O cérebro humano é capaz de identificar os intervalos entre notas sucessivas — a melodia — e avaliar se cada uma se encaixa no contexto — o tom da música. Em outras palavras: mesmo que você não saiba dizer o tom de uma música, seu cérebro consegue avaliar se cada nota pertence àquele tom.

Como? A região auditiva do córtex, a parte mais superficial do cérebro, recebe informações do ouvido já separadas pela freqüência do som. Ou seja, o sinal de cada nota musical chega já separadinho dos sinais das outras notas — sol sustenido (415 Hz), lá central (440 Hz) ou lá uma oitava acima (880 Hz), por exemplo. Como resultado, cada nota é ’representada’ em um local diferente do córtex auditivo. Para ouvir a música, no entanto, deve ser preciso que alguma outra região do cérebro acompanhe as relações entre as notas, inclusive se elas se encaixam no mesmo tom.

Um estudo publicado na revista Science de 13 de dezembro indica que região é essa que acompanha as relações entre as notas. O neurocientista Petr Janata, o músico recém-formado Jeffrey Birk e outros quatro cientistas da Universidade Dartmouth (EUA) pediram a oito músicos experientes que ouvissem uma melodia composta por Birk especialmente para o estudo.

A melodia de oito minutos, tocada por uma clarineta, passeava gradativamente por todas as 24 escalas maiores e menores da música ocidental. Começava no tom de Dó maior, depois entrava no tom relativo Lá menor, que difere da primeira escala em apenas uma nota; daí a melodia passava para outro tom maior, Mi, seguido do seu relativo Dó sustenido menor; dali para outro tom maior, Lá bemol, e assim por diante.

Dentro de um aparelho de ressonância magnética que acompanhava o grau de atividade de cada região do cérebro, os voluntários deviam ouvir a melodia e ora indicar quando uma nota fosse produzida por um instrumento diferente, ora detectar notas ’desafinadas’, que não se encaixassem no tom da melodia.

Janata e seus colegas buscavam regiões do cérebro que acompanhassem o tom da música, e não as notas individuais — e encontraram. Várias regiões, inclusive aquelas que processam os sons individuais da música, detectavam a nota desafinada ou produzida por outro instrumento. E na porção pré-frontal rostromedial do córtex, próxima ao centro da testa, o local exato do foco da atividade cerebral mudava conforme o tom da música. Enquanto as notas variavam dentro das regras de um mesmo tom, a atividade se concentrava em um ponto; assim que a melodia mudava de tom, a atividade ’pulava’ para outro ponto na mesma região. É como se houvesse um mapa de tonalidades nessa região do cérebro, onde cada ponto representa um dos 24 tons musicais.

Só que esse mapa, ao contrário daquele que representa no cérebro cada som individual, não é fixo. Quando os mesmos voluntários foram examinados outras vezes com a mesma melodia, o tom que ativava cada ponto do ’mapa de tonalidades’ no cérebro mudou. Quem um dia respondia a variações dentro do tom de Lá maior, no outro respondia ao tom de Dó sustenido menor, por exemplo. O que isso significa?

Difícil dizer tão cedo. Os pesquisadores especulam que essa variabilidade seja o mecanismo que permite que uma melodia mantenha sua identidade seja qual for o tom em que é tocada: desde que as notas do Hino Nacional se mantenham dentro do tom, pouco importa se ele é tocado em Si bemol maior ou cantado em Fá maior.

Somente novos experimentos irão dizer. Talvez mais importante para essa região sejam as relações entre tons: ao invés de detectar se uma nota subiu ou desceu uma terça, talvez o ’mapa de tonalidades’ indique se o tom da música mudou e em que direção. Mudar o tom no meio da música é um recurso manjado: nas sonatas para piano de Beethoven, por exemplo, o tema principal é sistematicamente repetido mais tarde em outro tom.

E se o tom exato pouco importa para a melodia, por que cargas d’água os compositores se dão ao trabalho de escrever obras em tons cheios de sustenidos ou bemóis? Se é para usar um tom maior, por que não escrever simplesmente em Dó maior, a escala preferida de todo estudante de música, sem nenhum bemol ou sustenido, e que só usa as teclas brancas do piano? Por que maltratar o intérprete de La fille aux cheveux de lin , em Mi bemol menor, onde Debussy tascou nada menos que sete bemóis, um para cada nota da escala, colocando a melodia quase exclusivamente nas teclas pretas do piano? Em Ré menor, um semitom abaixo, a melodia seria a mesma, e com apenas dois sustenidos!

Às vezes a resposta é que o instrumento tem um alcance limitado, como a flauta, e para que ele consiga tocar todas as notas da música, só mesmo mudando o tom. Muitas vezes o que é limitado é a voz de um cantor, e nesse caso ou o acompanhamento se adapta mudando de tom ou falta voz para graves e agudos.

Talvez o acaso às vezes dê o tom, conforme a primeira nota da música que sai da cabeça do compositor: as outras apenas se seguem, e o tom que vai para a partitura é só a conseqüência. Talvez às vezes seja capricho, ou o desafio de compor em um tom diferente, mais ’difícil’. No caso de Debussy, escrevendo para o piano, talvez tenha sido um senso de estética, fazendo os dedos passearem pelas teclas pretas, como se flutuassem um centímetro acima do teclado para quem vê de longe.

Ou vai ver que foi pura maldade mesmo…

Fonte: Janata P, Birk JL, Van Horn JD, Leman M, Tillmann B, Bharucha JJ (2002). The cortical topography of tonal structures underlying Western music. Science 298, 2167-2170.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia