Quantos neurônios tem um cérebro?

Quando, seis anos atrás, eu estava finalizando o livro que tem o mesmo título que esta coluna, convidei minha colega Suzana Herculano-Houzel a escrever quadros curtos sobre a história da neurociência para serem incluídos no livro. Certa ocasião ela me questionou sobre o título: “Cem bilhões de neurônios? Quem disse que o número certo é esse?”. Intrigados, decidimos verificar quais fontes experimentais justificavam a adoção universal desse número para o cérebro humano.

Os dois tipos celulares principais do cérebro são as células gliais (acima) e os neurônios (abaixo). Fotos: José Garcia Abreu e Stevens Rehen. 

A pesquisa bibliográfica que fizemos nos surpreendeu: a escassa evidência disponível era inferida a partir de medidas de densidade de neurônios em regiões restritas do encéfalo humano. Os pesquisadores contavam quantos neurônios podiam ver ao microscópio por milímetro cúbico e multiplicavam pelo volume do encéfalo. A chance de erro era grande, pois a densidade neuronal em um cérebro inteiro varia muitíssimo. E não só para o cérebro humano, também para o dos animais.

Daí surgiu um novo projeto de pesquisa. Tínhamos que esclarecer essa questão, ou eu deveria mudar o título do livro. Como as técnicas disponíveis não eram satisfatórias, o primeiro desafio era inventar um método novo, que permitisse calcular o número total com maior precisão.

Suzana chegou a uma solução engenhosa: poderíamos passar cada encéfalo por um aparelho homogeneizador que destruísse todas as células, mas não os seus núcleos. Depois separaríamos os núcleos dos detritos celulares, e os misturaríamos em um líquido de volume conhecido. Mexendo a mistura, teríamos um meio homogêneo contendo todos os núcleos do encéfalo, e como no cérebro cada célula tem apenas um núcleo, poderíamos medir a densidade de pequenas amostras e multiplicar pelo volume da mistura, para chegar ao número total minimizando a taxa de erro. Os núcleos dos neurônios poderiam ser contados separadamente dos núcleos das outras células, pois contêm uma proteína específica que pode ser reconhecida por uma reação simples.

O teste foi feito em ratos, e deu certo! Descobrimos que o encéfalo do rato tem cerca de 330 milhões de células, das quais 200 milhões são neurônios, sendo que apenas 15% destes estão situados no córtex cerebral. Como em ciência e conversa-mole uma coisa puxa a outra, pareceu estranho que uma proporção tão pequena estivesse localizada no setor do cérebro considerado o pináculo da evolução, a máquina mais fantástica que a natureza gerou em tantos milhões de anos. E mais: poderíamos nos perguntar agora se a natureza criou cérebros maiores aumentando o número de neurônios ou o número das outras células ou ainda o tamanho delas. A pergunta seguinte passou a ser: o que faz com que o cérebro de alguns animais seja maior que o de outros?

De camundongos a capivaras

O estudo comparou o número de neurônios do cérebro de diferentes roedores, do camundongo (no topo) à capivara (abaixo). 

No experimento que fizemos, então, para relacionar o número de neurônios com o tamanho do cérebro, utilizamos material de diferentes animais da ordem dos roedores: camundongos, hamsters, ratos, cobaias, cutias… e duas enormes capivaras doadas pelo Ibama do Pará. A capivara tem um corpo mais de mil vezes maior que o do camundongo, enquanto o seu cérebro é quase duzentas vezes maior.

Nossa nova técnica apurou que o número de células aumenta de 100 milhões no camundongo para quase 5 bilhões na capivara, um aumento de 45 vezes. Ao mesmo tempo, o número de neurônios aumenta 22 vezes entre os 70 milhões do camundongo e o bilhão e meio da capivara. Essas variáveis apresentaram uma relação matemática de crescimento conhecida como função potência .

Tudo bem: era mesmo de esperar que cérebros maiores contivessem mais neurônios. O que foi surpreendente é que a proporção de neurônios no córtex cerebral se mantinha constante em torno de 20% do total de células, enquanto a proporção de neurônios no cerebelo crescia de 60% no camundongo para quase 80% na capivara. Quer dizer: quando um cérebro se torna maior, o número de neurônios aumenta mesmo é no cerebelo, e não no córtex.

Então, se os neurônios são as unidades computacionais do cérebro, quanto maior o número dessas células, tanto maior a capacidade computacional da região cerebral correspondente. Isso pode significar que a tal encefalização que os evolucionistas atribuem ao crescimento de tamanho do cérebro – e em particular do córtex cerebral – na verdade representa uma cerebelarização , sendo esta a região que maior capacidade computacional ganharia com o crescimento do encéfalo. O que, aliás, casa bem com as descobertas recentes de que o cerebelo humano está envolvido em funções cognitivas de grande complexidade, como é o caso do processamento musical.

Mas e os cem bilhões de neurônios do cérebro humano, como é que ficam? Bem, o leitor terá que esperar mais um pouco para saber a resposta. É que o nosso método permite estimar em dois dias o número de neurônios de um camundongo, mas leva dois meses para estimar o número de neurônios do enorme cérebro humano. No momento, estamos contando febrilmente o número de células de cérebros humanos obtidos do Banco de Cérebros da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e já temos três espécimes inteiramente quantificados. Mas esse número ainda é pequeno para afirmar alguma coisa com segurança. O jeito é aguardar mais um pouco… SUGESTÕES PARA LEITURA
D.A. Clark e colaboradores (2001) Scalable architecture in mammalian brains. Nature , vol. 411, pp. 189-193.
K.H. Harrison e colaboradores (2002) Scaling laws in the mammalian neocortex: does form provides clues to function? Journal of Neurocytology , vol. 31, pp. 289-298.
S. Herculano-Houzel e R. Lent (2005) Isotropic fractionator: A simple, rapid method for the quantification of total cell and neuron numbers in the brain. Journal of Neuroscience , vol. 25, pp. 2518-2521.
S. Herculano-Houzel, B. Mota e R. Lent (2006) Cellular scaling rules for rodent brains. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA , vol. 103, pp.  12… .

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
26/08/2006