Na coluna de agosto , discuti a influência do pensamento de Aristóteles sobre algumas noções atuais de hereditariedade e evolução. Hoje, vamos viajar novamente à Grécia, mas em uma época mais antiga ainda, para visitarmos Tales de Mileto (624 a.C.–546 a.C.), considerado o pai da filosofia ocidental. Tales queria descobrir, por meio de reflexão racional, alguma substância material fundamental que pudesse explicar toda a constituição do mundo visível. Após muito matutar, chegou à conclusão de que esta era a água, pois a partir dela era possível explicar os outros três elementos principais (terra, ar e fogo): a terra é água sólida, o ar é água rarefeita e o fogo é ar rarefeito, ou seja, água duplamente rarefeita.
Mas onde foi que Tales arrumou uma idéia tão estranha? Por que não considerou a terra simplesmente como terra, o ar como ar e o fogo como fogo? Para entender isso, temos de traduzir a afirmação “tudo é água” do “metafisiquês”, o jargão da filosofia. Ela quer dizer o seguinte: o mundo que percebemos é caracterizado por uma grande diversidade, mas essa diversidade é apenas aparente e por trás dela existe uma unidade fundamental. Prestem atenção na sofisticação desse raciocínio. Com Tales, nasceu não só a filosofia ocidental, mas também o pensamento científico.
Diversidade geográfica humana e “raças”
Quando estudamos os seres humanos, também observamos uma grande diversidade morfológica, que pode ser descrita em dois níveis diferentes. O primeiro é o nível interpessoal, a diversidade que distingue uma pessoa da outra na mesma população e que está intimamente ligada à identidade individual. O segundo é o nível interpopulacional, ou seja, a diversidade morfológica que caracteriza populações, especialmente grupos de diferentes continentes.
Johann Friedrich Blumenbach, cuja classificação de “raças” humanas foi historicamente muito influente.
A segunda diversidade é relevante, pois historicamente tem servido de base para a divisão da humanidade em “raças”. A mais influente proposta neste sentido foi a do antropólogo alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752–1840). Em seu livro De generis humani varietate nativa (“Das variedades naturais da humanidade”) propôs a existência de cinco principais “raças” humanas: a caucasóide, a mongolóide, a etiópica, a americana e a malaia.
A “raça” que incluía os nativos da Europa, Oriente Médio, Norte da África e Índia, foi chamada “caucasóide”, porque Blumenbach achava que o “tipo” humano perfeito era o encontrado nos habitantes das montanhas do Cáucaso. Essa classificação persistiu até o século 20, quando foi demonstrado, como veremos a seguir, que é impossível separar a humanidade em categorias raciais biologicamente significativas, independentemente do critério adotado.
Diversidade genômica humana
A descrição das variabilidades morfológicas interpessoal e interpopulacional pertence à esfera das aparências, ao mundo fenotípico. Se agora penetrarmos no mundo genômico, o quadro muda consideravelmente. Subjacente à individualidade morfológica das pessoas realmente existe uma individualidade genômica absoluta. Estudos em DNA demonstram que cada ser humano é genomicamente diferente de todos os outros, com exceção de gêmeos idênticos.
No entanto, a representação genômica da variabilidade entre os grupos humanos dos diferentes continentes – ou seja, as ditas “raças” humanas – é muito pequena. As características físicas desses grupos na realidade representam adaptações morfológicas ao meio ambiente, sendo assim produtos da seleção natural agindo sobre um pequeno número de genes.
Acredita-se, por exemplo, que dois fatores seletivos servem para adaptar a cor da pele aos níveis de radiação ultravioleta do ambiente geográfico: a destruição do ácido fólico quando é excessiva e a falta de síntese de vitamina D3 na pele quando a ela é insuficiente. A cor da pele é determinada pela quantidade e tipo do pigmento melanina na derme, que são controlados por poucos genes (de quatro a seis), dos quais o mais importante parece ser o gene do receptor do hormônio melanotrópico.
Da mesma maneira que a cor da pele, outras características físicas externas como o formato da face, da fissura palpebral, dos lábios, do nariz e a cor e a textura do cabelo são traços literalmente superficiais. Embora não conheçamos os fatores geográficos locais responsáveis pela seleção dessas características, é razoável assumir que esses traços morfológicos espelhem adaptações ao clima e outras variáveis ambientais de diferentes partes da terra.
Assim como a cor da pele, essas características físicas das porções expostas do corpo dependem da expressão de poucos genes. Resumo da ópera: as diferenças icônicas das chamadas “raças” humanas correlacionam-se bem com o continente de origem, mas dependem de uma porção ínfima dos cerca de 25.000 genes estimados do genoma humano.
Em outras palavras, pode parecer fácil distinguir fenotipicamente um europeu de um africano ou de um asiático, mas tal facilidade desaparece completamente quando procuramos evidências dessas diferenças “raciais” no genoma das pessoas. As diferenças entre os grupos humanos continentais – ou seja, o que se costumava chamar “raças” humanas – estão literalmente à flor da pele!
Em uma conferência proferida em 2004 na Universidade de Berkeley (EUA), o brilhante geneticista norte-americano Richard Lewontin (1929-) fez uma importante observação a respeito dos níveis de diversidade humana (a conferência pode ser assistida clicando-se aqui ). Uma marca de preconceito é ver a humanidade em termos apenas interpopulacionais, ou seja, a inabilidade de reconhecer em outros grupos “raciais” a individualidade de cada pessoa. Isto é frequentemente expresso na frase: “ eles parecem todos iguais, mas nós somos todos diferentes uns dos outros”. Ao ser negada a individualidade dos membros de outros grupos, eles são objetivados, desumanizados. É igual dizer: “eu sei a ’raça‘ a que ele(a) pertence, portanto já sei tudo que é possível saber a respeito dele(a)”.
A inexistência biológica de “raças” humanas
É possível saber qual proporção da variabilidade genômica humana ocorre em nível interpessoal (dentro das populações) e qual proporção é interpopulacional (entre as populações)? A resposta é sim. Em 1972, Lewontin compilou da literatura científica as freqüências alélicas de 17 polimorfismos genéticos clássicos disponíveis na época (incluindo grupos sangüíneos, proteínas séricas e isoenzimas) de diferentes populações. A partir desses dados, ele agrupou as diferentes populações em “grupos raciais” definidos de acordo com Blumenbach e calculou a diversidade dentro desses grupos e entre eles.
O resultado foi que 85,4% da diversidade alélica ocorria dentro das próprias populações, 8,3% entre as populações de uma mesma “raça” e apenas 6,3% entre as chamadas “raças”!!! Recentemente, nosso grupo de pesquisa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), trabalhando com 40 polimorfismos de inserção-deleção de DNA em 1064 indivíduos de todo o globo, confirmou amplamente os resultados de Lewontin (este estudo acaba de ser publicado no periódico Annals of Human Genetics– clique aqui para acessar).
A constatação de que uma parte muito pequena da variação genômica humana ocorre entre as supostas “raças” leva necessariamente à conclusão de que elas não são significativas do ponto de vista genético ou biológico. Duas outras linhas separadas de pesquisa dão suporte cientifico a essa inexistência de “raças” humanas. A primeira é a constatação de que a espécie humana é muito jovem e seus padrões migratórios demasiadamente amplos para permitir uma diferenciação e conseqüentemente separação em diferentes grupos biológicos que pudessem ser chamados de “raças”. A segunda é a observação de que uma proporção pequena de todos os alelos de polimorfismos humanos é vista em apenas um continente, ou seja, a vasta maioria da variabilidade genômica é compartilhada entre as chamadas “raças”.
Por uma humanidade desracializada
O poeta romano Virgílio foi escolhido por Dante Alighieri (1265-1321) como guia na Divina Comédia . Na ilustração de William Blake (1757-1827) vemos Dante e Virgílio perante as portas do inferno.
O fato assim cientificamente comprovado da inexistência das “raças” deve ser absorvido pela sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes morais. Uma postura coerente e desejável seria a construção de uma sociedade desracializada, na qual a singularidade do indivíduo seja valorizada e celebrada. Temos de assimilar a noção de que a única divisão biologicamente coerente da espécie humana é em bilhões de indivíduos e não em um punhado de “raças”.
Há um poema atribuído ao romano Virgílio (70 a.C.–19 a.C.) no qual ele descreve a feitura do moretum, uma massa não fermentada, assada, recheada com vinagre e azeite, coberta com fatias de alho e cebola crua (há quem acredite que o moretum é um dos precursores da pizza). Na receita, Virgílio descreve como as várias cores dos diferentes ingredientes vão se mesclando e se unindo:
It manus in gyrum: paulatim singula vires
deperdunt proprias; color est e pluribus unus.
(Minha tradução: Sua mão se move em círculos, até que um por um eles perdem seus próprios poderes, e, entre tantas cores, uma única emerge).
Nesta época atual de conflitos de civilizações e recrudescimento de ódio étnico e racismo, precisamos esquecer as diferenças superficiais de cor entre os grupos continentais (vulgos “raças”) e por trás da enorme diversidade humana distinguir uma espécie única composta de indivíduos igualmente diferentes e irmãos. Color est e pluribus unus.
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
08/09/2006