O mundo contemporâneo é constantemente sacudido por dramas e polêmicas envolvendo a relação entre a religião e a ordem civil, pública, moderna.
O paradigma iluminista concebeu a condição política moderna como distante da esfera dos valores religiosos, independente de seus ditames; por força das resistências muito acirradas que a maior parte das forças religiosas institucionalizadas no mundo europeu antepôs a essa nova ordem.
Por outro lado, essa ordem emergira a partir de processos ideológicos internos à própria dinâmica religiosa do Ocidente, como se ressalta hoje de modo cada vez mais frequente, sublinhando a raiz cristã do que se conhece como um universalismo, um humanismo e um secularismo.
A intrínseca valorização da interioridade e integridade do fiel, garantida pela graça divina, e sua relativa liberdade na gestão dos rumos terrenos com vistas à salvação é um dos diversos pontos de ancoragem do ideário republicano moderno no mais profundo imaginário cristão.
Também na história da nação brasileira a questão vem sendo estudada, e uma recente tese, do antropólogo Eduardo Dullo, dispõe-se a compreender como dimensões importantes do catolicismo aqui desenvolvido se mobilizaram para produzir efeitos de valorização da pessoa humana que redundaram numa acrescida secularização.
Como diz o autor: “a criação de um regime secular moderno no Brasil é não somente indissociável do cristianismo anteriormente existente e do que se consolidou ao longo da segunda metade do século XX como é, centralmente, uma secularidade que pode ser lida como efeito – ainda que não desejado ou não esperado – de diversas ações cristãs, e sobretudo de um determinado segmento católico, em sua busca pela ‘mundanização’ do cristianismo”.
O ponto de partida para sua análise foi a figura notável do educador Paulo Freire (1921-1997), personagem crucial da história brasileira durante toda sua vida adulta, mesmo quando exilado pela ditadura militar.
Raízes religiosas
Quando Freire assumiu seu primeiro cargo público, em 1946, como diretor do Departamento de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco e iniciou o seu trabalho de alfabetização popular, já se nutria de uma longa tradição de interesse social da Igreja Católica brasileira, trabalhada pela romanização de finais do século 19, desafiada pela perda dos privilégios imperiais com o advento do regime republicano, e reanimada pelo movimento da Ação Católica, criada em 1935 pelo Cardeal Sebastião Leme (1882-1942) e dirigida pelo intelectual e publicista Alceu Amoroso Lima (1893-1983).
O processo de consolidação de uma esfera pública relativamente autônoma no Brasil devia contribuições também a outros movimentos religiosos, como o espiritismo kardecista e o protestantismo histórico, liberado dos entraves ao seu culto pela república. Mas o maciço pertencimento da população ao catolicismo, pelo menos nominalmente, fazia depender de maneira muito mais viva da ação da Igreja qualquer avanço na direção de uma ordem civil estabilizada.
As contradições sempre foram muitas – e, no próprio corpo da Igreja, intensas forças conservadoras se contrapuseram às dinâmicas modernizantes e resistiram até mesmo aos ventos liberalizantes oficiais que sopraram do Concílio Vaticano II (1961-1965).
As categorias de “consciência” e “conscientização” balizam a contribuição de Paulo Freire ao conhecimento e superação do que ele mesmo descreveu, em sua tese ‘Educação e Atualidade Brasileira’, de 1959, como uma “antinomia fundamental” entre a “emergência do povo na vida pública” e a fraqueza das “disposições mentais” decorrente da inexperiência democrática nacional.
Donde a necessidade de uma verdadeira reforma moral, em que o seu método de alfabetização se desenhava como uma primeira fórmula do que veio a propor mais tarde como uma “pedagogia do oprimido”. A essa altura, sua disposição de valorização da pessoa humana se articulava com a teoria marxista, de libertação coletiva das forças políticas e econômicas que se antepunham ao reino da liberdade e da autonomia.
Os desenvolvimentos da obra e da ação de Freire foram, nesse sentido, indissociáveis da formação do que se veio a chamar de Teologia da Libertação, exponencialmente defendida no quadro brasileiro por teólogos como Rubem Alves e os irmãos Clodovis e Leonardo Boff.
Eduardo Dullo chama a esse movimento maior, que incluiu também, nos anos 1970, um Teatro do Oprimido (do teatrólogo brasileiro Augusto Boal) e uma Psicoterapia do Oprimido (do psicólogo argentino Alfredo Moffatt), de “paradigma da libertação”, para distingui-lo das fórmulas políticas que se aglutinaram nas décadas seguintes em torno de um “paradigma da inclusão”, articulado com as políticas neoliberais e com uma nova e generalizada ênfase na prosperidade individual. Seu trabalho dialoga assim com os que vêm analisando a ação das religiosidades cristãs pentecostais e carismáticas, e, dentro delas, particularmente o que se chama hoje de Teologia da Prosperidade.
Valores e contradições
O complexo mundo pentecostal brasileiro contemporâneo tem colocado muita lenha na fogueira das relações entre a religião e a ordem civil. Por um lado, vem se reconhecendo o papel de empoderamento que cumpre junto às classes populares brasileiras, chamadas, nessas denominações, a um protagonismo moral e público intensificado.
Por outro lado, têm se tornado notórias as ações políticas de alguns de seus segmentos de defesa de valores morais extremamente conservadores, exemplarmente denunciados como antagônicos à liberdade e à autonomia prezadas pelo ideário republicano moderno.
Essas contradições não são exclusivas do quadro brasileiro. São mesmo de primeira linha nos EUA, nação em que a religião nunca esteve ausente do quadro da vida pública e civil, ainda que de formas muito peculiares. O acirramento de um fundamentalismo no cenário religioso estadunidense, ou seja, de defesa de posições morais e políticas derivadas de uma leitura literal dos textos sagrados, vem ecoando os desenvolvimentos homólogos emergentes no mundo islâmico ou hinduísta, para grande inquietação dos defensores da ordem civil secular longamente burilada na tradição ocidental.
Esperemos que, assim como o secularismo moderno, com sua radical valorização da liberdade e da igualdade da humanidade, proveio de antigas raízes religiosas, assim também as renovadas religiosidades contemporâneas possam plasmar uma ainda mais alargada – e não amesquinhada – compreensão dos sentidos do mundo.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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