Assim como os blocos carnavalescos proliferaram pelas ruas do Rio de Janeiro em fevereiro, ótimos artigos sobre o Alzheimer foram publicados nas melhores revistas científicas do mundo ao longo deste mês, mostrando avanços no entendimento dessa doença que acomete mais de 1 milhão de brasileiros.
Aproveito esta coluna para descrever um deles, que se baseia na técnica de reprogramação celular. Dessa vez o mérito é de cientistas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e do Instituto de Células-Tronco de Harvard, nos Estados Unidos.
Como sabemos, há uma concordância impressionante entre a doença de Alzheimer e a síndrome de Down – a última caracterizada pela presença de três cromossomos 21, em vez de dois. Essa concordância é tamanha que a incidência de Alzheimer entre os portadores da síndrome de Down com idade superior a 50 anos é de 100%.
A alta prevalência de Alzheimer nos portadores da síndrome de Down é atribuída ao excesso de produção da proteína precursora amiloide (APP), cujo gene se localiza justamente no cromossomo 21. Há outros genes no cromossomo 21 que contribuem para o risco aumentado de demência em pessoas com síndrome de Down, como o que codifica a enzima que fosforila a tau, uma proteína que ajuda a estabilizar o citoesqueleto celular.
Dada a manifestação precoce da doença de Alzheimer em portadores da síndrome de Down, cientistas liderados por Frederick J. Livesey formularam a hipótese de que neurônios corticais gerados de células-tronco de pluripotência induzida (iPS), por sua vez reprogramadas a partir de fibroblastos da pele de um pessoa com síndrome de Down, deveriam adquirir características típicas da doença de Alzheimer rapidamente in vitro.
Os autores foram capazes de criar neurônios muito semelhantes aos que existem no córtex cerebral de pessoas com síndrome de Down. Essas células foram então comparadas a neurônios produzidos da mesma forma, só que a partir de células iPS de uma pessoa saudável ou de células-tronco embrionárias humanas.
A equipe pôde ainda acompanhar, em tempo real, o surgimento das principais marcas da doença de Alzheimer, incluindo a produção excessiva dos peptídeos Aβ40 e Aβ42 – produzidos pela quebra enzimática de APP –, a formação de agregados amiloides e a fosforilação anormal da proteína tau.
Surgimento precoce
As primeiras análises foram de certa maneira desapontadoras, visto que os cientistas não conseguiram identificar diferenças morfológicas entre os neurônios gerados a partir das iPS do portador da síndrome de Down e do controle. Da mesma forma, não notaram alterações na maneira como essas células se comunicavam entre si.
No entanto, ao acompanhar por dois meses o curso-temporal do acúmulo dos peptídeos Aβ40 e Aβ42 gerados pelos neurônios produzidos no laboratório, os autores chegaram aos primeiros resultados relevantes. Após esse período, os neurônios criados a partir das células iPS do portador da síndrome de Down produziram pelo menos seis vezes mais peptídeos Aβ40 e Aβ42 do que os neurônios do indivíduo saudável.
Por outro lado, as células da pele e as células iPS indiferenciadas do portador da síndrome de Down não produziram tanto Aβ40 e Aβ42, o que indica que aumentos nos níveis desses peptídeos só acontecem mesmo nos neurônios.
O curto período de tempo para a identificação dos biomarcadores da doença de Alzheimer nos neurônios com Down pode ser comparado ao observado nas crianças e adolescentes portadores da trissomia do cromossomo 21 que já possuem níveis significativamente aumentados de Aβ42 solúvel ou placas amiloides. Pessoas com Down em geral possuem essa predisposição para o aparecimento precoce dos sinais biológicos da doença de Alzheimer, apesar do início da demência ocorrer geralmente na meia-idade desses indivíduos.
A aplicação por quatro dias de um medicamento já utilizado no tratamento do Alzheimer, capaz de inibir o complexo enzimático gama secretase, crucial para a quebra de APP, reduziu pela metade a geração dos peptídeos Aβ, enquanto que o tratamento mais prolongado com esse mesmo medicamento (por 21 dias) reduziu a secreção desses peptídeos a níveis indetectáveis. Esses resultados confirmam a utilidade das células iPS na identificação de marcas precoces e também de novos agentes terapêuticos para tratar essa patologia.
Abordagem inovadora
Devido ao aumento observado na produção de Aβ40 e Aβ42 pelos neurônios corticais criados a partir das células iPS do portador da síndrome de Down, os pesquisadores resolveram acompanhar em tempo real a formação das placas amiloides, usando para isso um corante capaz de detectar agregados em células vivas.
Constataram que neurônios gerados a partir das células iPS-Down apresentavam esses agregados, enquanto o mesmo não foi observado nos neurônios saudáveis. A própria razão Aβ40:Aβ42 foi alterada e os neurônios do portador da síndrome de Down aumentaram desproporcionalmente a produção de Aβ42 (a forma mais patogênica do peptídeo), de forma semelhante ao observado no cérebro de pacientes com Alzheimer.
Outros fenômenos característicos da doença de Alzheimer foram observados nos neurônios gerados a partir das células iPS do portador da síndrome de Down, como a hiperfosforilação da proteína tau e o nível alto da forma solúvel dessa proteína no ambiente extracelular.
Curiosamente, os autores também observaram uma quantidade bastante aumentada de células mortas nas culturas dos neurônios do portador da síndrome de Down quando comparada ao controle, sugerindo que a morte celular é a principal causa do extravasamento de tau para o exterior das células.
Uma observação surpreendente do estudo é que todos esses fenômenos foram detectados somente nos neurônios, e não nos fibroblastos ou nas células iPS indiferenciadas do portador da síndrome de Down. Isto é particularmente notável, levando-se em consideração que a expressão aumentada de APP, em virtude das três cópias do cromossomo 21, estaria presente em todos esses tipos celulares.
Por outro lado, como as características patológicas do Alzheimer são observadas no cérebro, esse modelo permitirá abordagens inovadoras a respeito da especificidade e vulnerabilidade seletiva do cérebro à doença.
Da mesma forma que Paulo Barros consagra-se em definitivo no carnaval carioca, os modelos biológicos baseados na reprogramação celular assim o fazem na área biomédica, inovando a maneira de se estudar as doenças humanas e vindo para ficar.
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro