Retrospectiva do tempo presente

Não sou muito boa de retrospectivas. Não só porque não tenho boa memória, mas também porque, como historiador tem um pouco de receio do futuro, eleger, no presente, um acontecimento marcante é sempre um tiro no escuro. Daqui a dez anos talvez ninguém se lembre dele ou, quem sabe, ele passe a ser visto como aquele momento seminal que mudou a história.

Por isso, quando perguntada sobre os assuntos que suscitaram debate e reflexão entre os historiadores e a sociedade neste ano de 2011, titubeei com a responsabilidade e me peguei pensando na própria ideia de retrospectiva.

Fazemos retrospectivas do ano, do século, das nossas vidas, das nossas carreiras talvez porque queiramos reforçar, para nós mesmos, o aspecto cíclico do tempo

Afinal, por que fazemos retrospectivas? Não é só para vender jornal. Fazemos retrospectivas do ano, do século, das nossas vidas, das nossas carreiras talvez porque queiramos reforçar, para nós mesmos, o aspecto cíclico do tempo. Ou talvez porque, ao elegermos acontecimentos do passado, hierarquizando-os, classificando-os, teimemos em dar sentido ao tempo.

Fazer retrospectiva é um pouco como fazer história. Quem elege os acontecimentos importantes do passado, quem lhes dá importância, somos nós mesmos, historiadores. Não há um consenso sobre quais são os fatos mais importantes que ocorreram na história da humanidade, assim como jamais haverá consenso sobre os fatos mais marcantes de qualquer ano. Tudo isso para dizer que a minha retrospectiva do ano é, como toda escolha, subjetiva.

Flashback

Haverá quem diga que, no mundo da cultura pop, o acontecimento do ano foi a morte da Amy Winehouse. Ou então que 2011 foi o ano em que a violência chegou às escolas do Brasil de uma maneira que ainda não conhecíamos, com o triste episódio do atirador que invadiu uma escola no Rio de Janeiro e matou doze crianças.

Não é difícil prever que este ano será lembrado pelas revoltas no mundo árabe. Os protestos que derrubaram o presidente da Tunísia, acabaram com a era Mubarak no Egito e estão dando trabalho para Assad, presidente da Síria – sem falar no assassinato de Kadafi, na Líbia – foram celebrados no Ocidente como se as classes médias árabes finalmente tivessem se curvado à superioridade da democracia.

Não se sabe ainda – e os primeiros resultados das eleições nesses países não são muito animadores – se a primavera árabe dará origem ao inverno islâmico, mas, se o assunto é democracia, 2011 também foi o ano do movimento Occupy Wall Street, que em setembro ocupou a praça Zuccotti, em Nova Iorque, para protestar contra a crise econômica e o sistema financeiro norte-americano.

'Occupy Wall Street'
2011 também foi o ano do movimento ‘Occupy Wall Street’, que em setembro ocupou a praça Zuccotti, em Nova Iorque, para protestar contra a crise econômica e o sistema financeiro dos Estados Unidos. (foto: Roey Ahram/ CC BY-NC-ND 2.0)

Ainda assim não estou convencida de que aqueles que se intitulam ser os 99% excluídos do sistema não queiram, no fundo, estar entre os 1% incluídos. Tomara que eu esteja errada. É provável que esteja mesmo, já que, tradicionalmente, as maiores críticas aos Estados Unidos foram feitas por eles mesmos, os norte-americanos – vide a contracultura e os protestos contra a guerra do Vietnã, na década de 1960.

Se os protestos dos norte-americanos não emocionam tanto, impressiona, e muito, que o Zuccotti Park tenha sido evacuado pela polícia, dando origem à repressão ao movimento em todo o país. Esta semana mesmo prenderam 31 pessoas que acampavam em um parque a duas quadras da Casa Branca, em Washington DC. Reprimir protesto pacífico não é coisa que se espere da terra que reivindica ser o berço da democracia.

Mas se 2011 vem sendo o ano do ressurgimento das lutas políticas em larga escala, também tem sido um exemplo de mudanças culturais importantes

Mas se 2011 vem sendo o ano do ressurgimento das lutas políticas em larga escala, também tem sido um exemplo de mudanças culturais importantes, resultado de ações geralmente perceptíveis em uma temporalidade bem mais longa: no mesmo ano em que o Supremo Tribunal de Justiça brasileiro autorizou o casamento gay, as mulheres sauditas passaram a ter direito de votar e de se candidatar nas próximas eleições municipais.

Ao contrário das mudanças culturais, alterações climáticas geralmente são pouco perceptíveis a olho nu. Mas agora está impossível não sentir. Começamos o ano com enchentes na Austrália e em Minas Gerais, sem falar na tragédia dos temporais na região serrana do Rio de Janeiro.

As inundações continuaram em março, com o tsunami no Japão, e em julho, na Tailândia. Terremotos devastaram a Nova Zelândia em fevereiro, o Japão em março e a Turquia em outubro. Nos Estados Unidos, um tornado destroçou o estado de Missouri em maio; logo depois, em agosto, o furacão Irene castigou o Caribe e a costa leste norte-americana. E tudo isso enquanto a Somália vivia a maior seca dos últimos 50 anos.

Acidente em Fukushima
Vista aérea da usina nuclear de Fukushima, no Japão, após explosões decorrentes de danos provocados pelo terremoto que atingiu a ilha no dia 11 de março deste ano. (foto: Flickr/ daveeza – CC BY-SA 2.0)

Ao contrário das retrospectivas, as mudanças climáticas nada têm de subjetivas. E olha que, se antes as variações do clima eram contadas em milênios, agora a escala está praticamente reduzida a meses.

Tomara que consigamos voltar às boas com o planeta. Mas, a depender do andamento da conferência da ONU sobre as mudanças climáticas que está ocorrendo agora na Africa do Sul, 2011 vai acabar sendo lembrado como o ano em que as potências mundiais – Brasil inclusive – perderam a oportunidade de mudar a História.

Em tempo

O ano termina com a notícia da morte da historiadora Maria Yêdda Linhares, aos 90 anos bem vividos. Não vou aqui repetir tudo o que o vem sendo dito a seu respeito. Basta dizer que a professora emérita da UFRJ, formadora de várias gerações de historiadores, também adorava a sala de aula e era uma ferrenha defensora da escola pública em tempo integral.

Não fui aluna da Maria Yêdda – professora dos meus professores e orientadora da minha orientadora. Tive poucas oportunidades de encontrá-la pessoalmente. Mas adoro a seguinte frase de sua autoria: “o historiador não pode viver apenas no meio de papel velho”. E olha que adoro um papel velho.

Fechar o ano com uma coluna sobre o tempo presente não deixa de ser também uma homenagem à historiadora que viveu, com toda a intensidade, a máxima de que, afinal, toda história é história contemporânea.

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Pós-doutoramento na Universidade de Michigan (bolsista da Capes)