Nanopartículas que salvam vidas

Em colunas anteriores discutimos alguns avanços científicos relacionados ao uso do magnetismo em medicina e farmacologia. Na última década, houve muito investimento para levar os resultados dessas pesquisas científicas para a rotina clínica. Usualmente, depois de experimentos laboratoriais para elaboração e refinamento de materiais e procedimentos metodológicos, inúmeras pesquisas são realizadas em tubos de ensaios com materiais inanimados. Esses experimentos são denominados in vitro. Depois, experimentos são realizados em organismos vivos. São os chamados experimentos in vivo, normalmente realizados com animais, antes de testes clínicos com seres humanos.

A literatura sobre a utilização de nanopartículas magnéticas em biomedicina é extensa e pode levar o leitor não especializado a equívocos quanto ao estado da arte. Nas colunas anteriores, mencionadas acima, os conceitos fundamentais foram apresentados de acordo com o estado da arte da pesquisa básica. Mas uma leitura muito cuidadosa tem que ser feita para distinguir os casos em que os resultados foram obtidos em experimentos in vitro daqueles obtidos in vivo. Entre estes, também é importante saber quais foram obtidos em casos clínicos. Por exemplo, é ampla a literatura sobre o uso de nanopartículas magnéticas em tratamentos de câncer por meio da hipertermia, mas até o momento nenhum caso clínico foi relatado na literatura.

Aplicação das nanopartículas

Micropartículas magnéticas vêm sendo usadas em diagnóstico e terapia desde o início dos anos 1970. É uma interessante história de desenvolvimento científico e tecnológico, mas não a abordaremos aqui. Vamos considerar aqui tão somente as aplicações de nanopartículas magnéticas. Ou seja, vamos deixar de lado a escala micrométrica (o micrômetro é a milésima parte do metro) e ingressar na escala nanométrica, mil vezes menor do que a micrométrica. Entre as várias aplicações de nanopartículas magnéticas em farmacologia e medicina, a literatura indica que o diagnóstico por imagem e a administração de medicamentos são as mais bem sucedidas. 

As nanopartículas magnéticas são bem sucedidas no diagnóstico por imagem

Imagens obtidas com ressonância magnética resultam da interação entre campos magnéticos externos e o momento magnético do próton presente no núcleo de hidrogênio. Embora o momento magnético do próton seja muito pequeno, o que dificulta a observação da interação com os campos externos, a ressonância magnética de tecidos biológicos apresenta bons resultados por causa da enorme quantidade de hidrogênio nesses tecidos. Em determinados casos, diferenças composicionais e estruturais de alguns tecidos podem ser ressaltadas com o uso de contrastes, materiais com grandes momentos magnéticos.

Um exemplo bastante popular é o gadolínio. Na forma convencional em que é usado atualmente, esse tipo de contraste atende bem as necessidades na escala micrométrica, mas é ineficiente quando se desejam imagens na escala molecular ou nanométrica. Em seu lugar entram materiais nanométricos à base de óxidos de ferro superparamagnéticos (SPIO, na sigla em inglês).

Na verdade existem duas classes de óxidos de ferro superparamagnéticos, ambas formadas pelos óxidos magnetita (Fe3O4) e maguemita (Fe2O3), em diferentes proporções. Na primeira classe (SPIO) as partículas têm raio igual ou superior a 60 nanômetros, enquanto na segunda classe os raios são iguais ou inferiores a 20 nanômetros. Esta classe é conhecida como óxidos de ferro superparamagnéticos ultrafinos (USPIO) ou nanopartículas de óxidos de ferro monocristalinos (MION). Mais adiante veremos o que tem a ver o raio das partículas com a funcionalidade clínica. Existe atualmente em uso clínico ou em testes de laboratório mais de uma dezena desses compostos. 

Para o diagnóstico, a técnica não é invasiva. Não há a necessidade de processos cirúrgicos para realização de biópsia 

Esses materiais também chamam a atenção porque podem ser utilizados para administração de medicamentos, embora neste caso alguns deles ainda não tenham sido autorizados para uso clínico. Quanto ao uso para diagnósticos, a vantagem é que a técnica não é invasiva. Ou seja, não há a necessidade de processos cirúrgicos para realização de biópsia. No caso da administração de medicamentos, a vantagem é que a aplicação local de uma medicação pode evitar efeitos colaterais presentes nos processos usuais, quando a medicação é distribuída por todo o corpo.

Os princípios da ressonância magnética

Para uma boa apreciação de como essas partículas agem na visualização de determinados tipos de lesões e tumores malignos, convém relembrar o princípio básico da ressonância magnética. O que mais chama a atenção em um equipamento de ressonância magnética é a enorme bobina no interior da qual o paciente é introduzido para a realização do exame. Aquela bobina gera um grande campo magnético, capaz de orientar os momentos magnéticos dos núcleos de hidrogênio presentes no corpo do paciente. Esses momentos magnéticos ficam girando em torno da direção do campo magnético com uma frequência conhecida como ‘frequência de Larmor’. Outro campo magnético, bem menor do que o da bobina é aplicado perpendicularmente a este.

Embora muito pequeno, esse campo transversal ‘puxa’ os momentos magnéticos do hidrogênio para baixo. Quando o campo transversal é desligado, os momentos tendem a voltar à sua posição inicial. Esse processo de volta é denominado ‘relaxação’. O processo de relaxação gera correntes elétricas, cujo tratamento matemático resulta na imagem. Portanto, os dois componentes mais importantes de um sistema de ressonância magnética são a bobina que gera o campo longitudinal e o programa de computador que transforma corrente elétrica em imagens.  

nanoparticulas que salvam
Acima, um aparelho de ressonância magnética. Desde 1996, nanopartículas magnéticas são usadas clinicamente como contraste nas ressonâncias (Foto: Jan Ainali / Wikimedia Commons).

 

Os tempos de relaxação podem ser alterados pela presença de alguns compostos magnéticos (por exemplo, compostos de gadolínio) no tecido sob análise. Essas alterações resultam em imagens com intensidades diferentes. Assim, a parte do corpo contendo esses compostos magnéticos aparece na imagem com maior ou menor intensidade. É por isso que eles são denominados contrastes magnéticos. Comercialmente esses produtos já estão na segunda geração, e a terceira geração já está nas bancadas de testes de alguns laboratórios. Do ponto de vista composicional, eles diferem quanto ao tipo de óxido, ao tamanho das partículas, e ao tipo e espessura do envoltório, geralmente um carboidrato. Essas variáveis conferem às partículas propriedades específicas, como os locais do corpo onde serão depositadas e o tipo de contraste exibido nas imagens, bem como a aglomeração, que é um fenômeno a ser evitado.

A primeira geração de nanopartículas magnéticas para uso como contraste em ressonância magnética começou a ser produzida nos anos 1980

A primeira geração de nanopartículas magnéticas para uso como contraste em ressonância magnética começou a ser produzida nos anos 1980. O primeiro produto aprovado para uso clínico (1996) foi o ferumoxides, um coloide à base de magnetita não estequiométrica, com composição FeO1,44, patenteado pela empresa norte-americana Advanced Magnetics e comercializado pela Bayer com o nome de Feridex, nos Estados Unidos, e Endorem na Europa. O modo de preparação em uma solução de dextran resulta em nanopartículas magnéticas encapsuladas por este polissacarídio biodegradável. Essa camada protetora tem duas finalidades. A primeira é facilitar a solubilidade do material no corpo humano, enquanto a segunda é evitar que as nanopartículas se aglomerem.

A baixa eficiência no cumprimento dessa última finalidade, consequência da baixa espessura da camada protetora, levou à segunda geração de nanopartículas magnéticas. Mas antes que a segunda geração chegasse ao mercado, o segundo produto da primeira geração, ferucarbotran, foi aprovado para uso clínico em 2001. Patenteado pela empresa alemã Schering AG com o nome comercial de Resovist, o contraste consiste em uma mistura de magnetita e maguemita, encapsulada com carboxydextran, um produto derivado do dextran, e igualmente biodegradável.

Esses dois produtos são comercializados sob a forma coloidal, prontos para injeção intravenosa. As partículas magnéticas têm dimensões similares, entre 60 e 80 nanômetros, e são usadas para detecção de tumores e lesões no fígado e no baço. A explicação para isso é muito interessante. Em primeiro lugar, é necessário ter em mente que essas nanopartículas reduzem o sinal da ressonância do ambiente onde se encontram. É por isso que são conhecidas como contrastes negativos. Em segundo lugar, vários estudos mostraram que 80% da dose injetada vai para o fígado, e 10% para o baço. Como o material injetado é um corpo estranho, imediatamente as defesas, representadas pelas células fagocitárias, tratam de isolá-lo. 

É possível identificar lesões muito pequenas, muito antes da metástase, aumentando a chance de cura

Agora vem o mais interessante. Tumores malignos, pelo menos aqueles observados no fígado e no baço, são desprovidos de células fagocitárias, de modo que a ação dessas células implica na concentração do contraste nas partes sadias. Portanto, os tecidos cancerosos aparecerão mais intensos na imagem da ressonância. Desse modo, é possível identificar lesões muito pequenas, muito antes da metástase, aumentando a chance de cura.

Logo depois do Feridex, a Advanced Magnetics, que em 2007 passou a se chamar AMAG Pharmaceuticals, produziu o ferumoxtran, comercializado na Europa com o nome de Combidex. Embora já tenha passado por todos os testes clínicos, o produto ainda não foi autorizado para comercialização nos Estados Unidos. O Combidex é um contraste de segunda geração com composição muito similar à do Feridex, FeO1,45, mas com raio menor e invólucro mais espesso. Essas duas características permitem que o Combidex permaneça durante mais tempo circulando no sangue e tenha menos chance de aglomeração. A consequência é que ele penetra mais profundamente em todos os tecidos, e circula no sistema linfático. Tem sido usado como contraste para detecção de tumores em diversos órgãos, incluindo nódulos linfáticos, próstata e cérebro.

O que foi exposto aqui representa uma porção muito pequena do espectro de aplicações da nanotecnologia na medicina. Falamos apenas de nanopartículas magnéticas usadas como contraste em ressonância magnética. E apenas aquelas aprovadas para uso clínico. Existe um número muito maior de produtos sendo testados em laboratório, sobretudo na área de administração de medicamentos, e a apresentação de novos materiais nanométricos é uma constante na literatura. Motivações de toda ordem orientam esse crescimento. O desafio intelectual intrínseco ao tema de pesquisa é certamente potencializado pelo valor econômico do mercado. Estima-se que por volta de 2015 a nanotecnologia dominará 90% do mercado de administração de medicamentos, representando negócios superiores a 300 bilhões de reais.

 

Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul