Revelações dos ossos de um réptil marinho extinto

Como já mencionado nesta coluna, a história evolutiva dos crocodilomorfos é rica e diversificada. Se hoje temos menos de 30 espécies desse grupo, todas de hábitos semiaquáticos, no passado havia centenas de formas, que ocuparam diferentes ambientes, desde a terra firme até o mar.

Os dirossaurídeos são um dos raros exemplos de répteis que sobreviveram à extinção em massa ocorrida há 66 milhões de anos

Entre as formas marinhas, um grupo de crocodilomorfos que se destaca são os dirossaurídeos. Tendo surgido no final do Cretáceo (há 70 milhões de anos) e desaparecido durante o Eoceno (há 40 milhões de anos), eles são um dos raros exemplos de répteis que sobreviveram à extinção em massa ocorrida há 66 milhões de anos, no limite Cretáceo-Paleoceno (comumente abreviado como limite K-Pg).

Após essa grande extinção, quando desapareceram os dinossauros (excetuando-se as aves), os dirossaurídeos se tornaram abundantes. Mesmo assim, diversos aspectos ecológicos desses animais permanecem desconhecidos.

Procurando apresentar novos dados acerca desses répteis marinhos, os pesquisadores brasileiros Rafael de Andrade e Juliana Sayão, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), acabam de publicar na revista PlosOne a primeira descrição paleohistológica de um dirossaurídeo encontrado no Brasil.

Estudo paleohistológico

Andrade e Sayão analisaram uma tíbia do lado esquerdo e um fêmur do lado direito, ambos ossos da perna. O material foi encontrado na mina Poty, situada ao norte de Recife. Nessa região, entre as Formações Gramame (Cretáceo) e Maria Farinha (Paleoceno), ocorre um dos raros registros do limite K-Pg no Brasil.

Os dois ossos procedem da Formação Maria Farinha e foram recuperados de blocos rolados. Além desses, foram encontrados outros ossos, geralmente atribuídos à espécie Guarinisuchus munizi, único representante conhecido desses répteis marinhos da Formação Maria Farinha.

Guarinisuchus munizi
Reconstituição artística do ‘Guarinisuchus munizi’, crocodilomorfo dirossaurídeo extinto do Brasil. Os crocodilomorfos são um raro exemplo de répteis que sobreviveram à extinção em massa ocorrida há 66 milhões de anos. (imagem: Nobu Tamura/ Wikimedia Commons – CC BY 3.0)

Como mencionei em coluna anterior, um estudo paleohistológico visa analisar a estrutura interna de ossos fossilizados, podendo apresentar dados sobre o funcionamento do animal, incluindo questões relativas à sua fisiologia e ecologia.

Devido à natureza destrutiva desse tipo de pesquisa, já que é necessário secionar os ossos – o que nem sempre é possível levando-se em conta a raridade dos fósseis –, ela ainda é pouco realizada, sobretudo com material brasileiro.

Aliás, estudos paleohistológicos de dirossaurídeos foram feitos apenas em um único exemplar de Dyrosaurus phosphaticus, espécie conhecida por diversos exemplares encontrados em rochas formadas durante o Eoceno no norte da África (Argélia e Tunísia).

Linhas de crescimento

A análise feita por Andrade e Sayão demonstrou que os ossos pertenciam a indivíduos diferentes e que estavam em distintos estágios de crescimento. O fêmur exibe na parte externa (periósteo) diversas linhas paralelas de parada de crescimento, conjuntamente denominadas de EFS (abreviação de external fundamental system).

Esse tipo de estrutura paleohistológica indica que o indivíduo estava na fase final de crescimento. Ou seja, o osso pertencia a um indivíduo já velho, que tinha atingido seu tamanho máximo quando morreu. Cabe salientar que esse tipo de estrutura (EFS) é rara em crocodilomorfos.

Fêmur de dirossaurídeo
Detalhe do fêmur de dirossaurídeo estudado por pesquisadores brasileiros. À esquerda (A), seção paleohistológica da parte mais externa do osso; à direita (B), seção da parte mais interna do osso, mostrando trabéculas desenvolvidas na região da medula. (imagem: Andrade e Sayão/ PlosOne)

Já a tíbia revelou cinco linhas de parada de crescimento – também chamadas de LAGs (abreviação de lines of arrested growth) –, com distância variável entre uma e outra. Tais estruturas indicam ao menos cinco períodos de crescimento, um claro indício de que o desenvolvimento desse dirossaurídeo não era contínuo, mas cíclico; havia tempos de crescimento mais acentuado, alternados com paradas ou taxas de crescimento muito baixas.

Essas feições são similares às encontradas em outros répteis marinhos extintos, incluindo Dyrosaurus phosphaticus, sugerindo que o padrão observado por Andrade e Sayão não é exclusivo do material brasileiro, mas possivelmente comum aos dirossaurídeos.

Rapidez e agilidade na água

As características osteológicas observadas indicam que a tíbia pertenceu a um adulto jovem, ainda em fase de crescimento, que não atingiu o tamanho máximo quando se tornou um fóssil. Esse padrão paleohistológico demonstra que pelo menos esse dirossaurídeo brasileiro não tinha crescimento contínuo, ao contrário do que ocorre com os crocodilomorfos recentes.

Tíbia de dirossaurídeo
Detalhe da tíbia de dirossaurídeo encontrada no Nordeste brasileiro. As setas pretas indicam as linhas de parada de crescimento do animal; a vermelha, transição da parte externa para a interna. (imagem: Andrade e Sayão/ PlosOne)

O motivo do crescimento cíclico observado no dirossaurídeo brasileiro não é bem conhecido. Em animais recentes, a alternância entre períodos de crescimento e de parada de crescimento em geral está relacionada com variações climáticas sazonais (verão e inverno) e disponibilidade de alimentação, entre outros fatores.

Em animais recentes, a alternância entre períodos de crescimento e de parada de crescimento em geral está relacionada com variações climáticas sazonais e disponibilidade de alimentação

Em muitos animais, como nos crocodilomorfos recentes, cada um desses LAGs representa um ciclo anual, em que o crescimento é maior durante o verão e reduzido no inverno. Caso esse dado possa ser aplicado ao fóssil brasileiro, pode-se extrapolar que o indivíduo representado pela tíbia tinha pelo menos cinco anos quando morreu.

Outro detalhe interessante observado no fêmur é que a estrutura externa do osso é relativamente fina, ao passo que a interna possui grande número de trabéculas (pequenas barras de tecido ósseo maciço) preenchendo a medula.

Tal configuração, que torna o osso mais leve, em geral está presente em animais que desenvolveram nado rápido e rico em manobras, como os cetáceos e as tartarugas marinhas. Dessa forma, os pesquisadores da UFPE sugerem que os dirossaurídeos eram bastante rápidos e ágeis dentro d’água. Segredos que estavam guardados a sete chaves nos ossos desses répteis aquáticos.

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
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O colega Mitsuru Arai (Cenpes, Petrobras) acaba de publicar no Brazilian Journal of Geology uma revisão sobre os depósitos formados durante o Cretáceo Inferior (Aptiano/Albiano) na costa brasileira, evidenciando uma influência do mar de Tétis vinda do norte, e não da região Sul, conforme tem sido propagado pela literatura, sobretudo internacional.

Acaba de ser publicada a ocorrência do primeiro ovo fóssil de uma ave procedente de depósitos cretáceos do Brasil. Coordenado por Júlio Marsola (USP-Ribeirão Preto), o estudo apresenta um único ovo, com pouco mais de 3 cm de comprimento, encontrado perto de Alvarez Machado (SP). O artigo foi publicado no periódico australiano Alcheringa.

Natalie Aubet (University of Alberta, Canadá) e colegas acabam de publicar no Journal of South American Earth Sciences uma revisão sobre a fauna de Ediacara encontrada em depósitos do Uruguai. Os autores questionam algumas identificações e defendem que todos os registros que podem ser relacionados de forma confiável a essa fauna se formaram entre 700 milhões e 1 bilhão de anos atrás

Liliana de Seoane (Museo Argentino de Ciencias Naturales, Buenos Aires) acaba de publicar na Revista Brasileira de Paleontologia estudo sobre grãos de pólens do gênero Classopollis procedentes de rochas depositados durante o período Cretáceo na região de Santa Cruz, Argentina. Utilizando microscopia eletrônica de varredura, a autora descobriu três novas espécies e apresentou diferentes maneiras de realizar uma identificação mais precisa de espécies do gênero.

Melanie Hopkins (Museum für Naturkunde, Berlim) publicou na Paleobiology artigo em que demonstra a influência do ambiente nas mudanças morfológicas observadas nos trilobitas (artrópodes exclusivos da Era Paleozoica). Como resultado principal, a pesquisadora concluiu que tais mudanças são bastante complexas e que os padrões variaram ao longo do tempo geológico.

O periódico Journal of Paleontology publicou em seu fascículo de julho uma série de artigos sobre o emprego de técnicas, como tomografias, no estudo de fósseis. Vale a pena conferir.