São dois pra lá, um pra cá

Da próxima vez que você se aproximar da sua cara-metade para beijar-lhe os lábios, dê um segundo de atenção à sua própria cabeça. Com um nariz destacando-se proeminentemente bem acima do alvo, um beijo na boca quase sempre envolve a inclinação das cabeças para um lado — e a sua provavelmente se inclinará em direção ao ombro direito, como fazem dois de cada três casais.

Isso foi o que o neurocientista alemão Onur Güntürkün constatou, após observar 124 casais de idades entre uns 13 e 70 anos se beijando na boca em locais públicos como aeroportos, estações de trem, praias e parques nos Estados Unidos, Alemanha e Turquia. Como um beijo na boca freqüentemente é apenas o início de uma longa sessão, com cabeças virando para lá e para cá, Onur evitou complicações e anotou a direção do primeiro beijo somente — o que, de quebra, certamente contribuiu para que nenhum casal se sentisse observado demais. O estudo, publicado na revista Nature de 13 de fevereiro, é uma excelente demonstração de que fazer pesquisa não é necessariamente sinônimo de gastar milhares de dólares.

Por que um neurocientista se interessaria em saber para que lado você inclina a cabeça quando beija? É que o cérebro, com seus dois hemisférios que controlam cada um o lado oposto do corpo, é palco de decisões importantes, como qual das mãos — e lado do cérebro — usar para escrever, qual pé chutará a bola, qual olho mirará pelo visor da máquina fotográfica. Na grande maioria das pessoas há uma preferência declarada por um de cada órgão duplo, seja olho, pé, ouvido ou mão. Quando se trata da mão, a direita tem a preferência de oito em nove pessoas. Mas se a questão é qual pé, ouvido ou olho usar, ou mesmo para qual lado o recém-nascido prefere virar a cabeça, duas em três vezes o lado escolhido será o direito.

Como mostra Güntürkün, até o beijo entra na dança, com o mesmo dois pra lá, um pra cá , e por isso essa assimetria talvez tenha a mesma origem fisiológica das outras preferências pelo lado direito do corpo. Que origem é essa? Ah, isso é outra estória… A genética parece ser importante, mas outros fatores como a simples posição do feto no útero materno também podem contribuir. É uma questão em aberto. O importante é que agora também o beijo entra para o rol dos parâmetros a serem investigados quando se trata de estudar a assimetria da preferência por um dos lados do corpo.

Inclinar a cabeça para beijar a boca do ser amado lembra outro comportamento que também envolve necessariamente uma opção por um lado: o beijo social, nas bochechas. Güntürkün dificilmente poderia ter estudado esses beijos, já que alemães, americanos e turcos raramente trocam beijos estalados nas bochechas quando se encontram ou despedem: o contato físico nessas horas é limitado a apertos de mão ou, no máximo, um abraço. Mas brasileiros seriam um prato cheio para esse estudo.

Daria até para escolher a tribo e a quantidade de beijos trocados: paulistanos trocam um só, cariocas dão sempre dois e mineiros sapecam logo três para garantir. E nem precisa ser neurocientista para notar que essas sessões de beijocas sociais geralmente começam pela bochecha esquerda, com a cabeça inclinada para o lado direito. Como qualquer preferência por pé ou mão, essa também tem sua utilidade: na maioria das vezes, evita um encontro desajeitado no meio do caminho!

Fonte: Güntürkün, O. Adult persistence of head-turning asymmetry. Nature 421, 711 (2003).

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia