E o que mudou recentemente? Ora, veio esta brusca e brutal crise econômica mundial, cujos efeitos estamos todos sentindo na carne, fruto da desregulamentação da indústria financeira. E, como numa ópera-bufa, os mesmos barítonos que clamavam morte à regulamentação agora se esgoelam pedindo mais, mas só depois de mais um pacote trilionário de ajuda, com seu, meu, nosso dinheiro.
No mesmo texto, tomamos também como exemplo a agricultura comercial e seus insumos químicos. E não é que o noticiário nos trouxe, pouco depois disso, uma eloqüente ilustração dos pontos acima?
Mas caberia ao leigo se perguntar: o que há de diferente nas pragas e no metabolismo humano lá e cá? Por que esse pesticida foi banido lá e ainda é considerado seguro ou aceitável aqui? Um dos principais motivos é que as agências reguladoras dos países desenvolvidos estabelecem cronogramas diferentes para a suspensão do uso doméstico e da fabricação!
Essa orientação é naturalmente voltada para a exportação para países com normas mais brandas. Não é difícil imaginar os esforços das indústrias para manter essas normas como estão, garantindo uma sobrevida comercial ao produto e o escoamento dos estoques acumulados em função da suspensão da comercialização e do uso nos seus países-sede.
Proibição e importação
Os dados do Sistema Integrado de Comércio Exterior mostram claramente o aumento da importação brasileira de agrotóxicos à medida que eles são proibidos em outros países. Exemplos são o paration metílico, que foi banido na China em 2006 e cuja importação pelo Brasil duplicou no ano seguinte, e o carbofuran, proibido na Europa desde 2005, e cuja importação também dobrou.
Este é um processo perverso, em que se atribui silenciosamente um valor monetário à vida, já que um certo aumento de morbidade e mortalidade em um local do planeta terá como contraponto a manutenção de empregos e lucros em outro.
Estava eu ainda sondando os mistérios das variações temporais e longitudinais da toxicologia humana quando, no dia 9 de novembro, topei com outro exemplo que parecia saído por encomenda. Em matéria para O Globo, Evandro Eboli relatava como a Justiça impediu a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de analisar agrotóxicos, graças a pareceres favoráveis da pasta da Agricultura e a liminares obtidas por empresas envolvidas com a questão.
Página inicial do portal da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão federal responsável pelo controle de medicamentos, alimentos e outros produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária (reprodução).
Estão em jogo doze produtos que são matéria-prima para fabricar uma centena de agrotóxicos usados em lavouras de cereais, frutas, legumes e verduras e que foram banidos nos EUA, na União Européia, no Japão e na China.
Os técnicos da Anvisa conseguiram concluir a análise de dois ingredientes. No caso da cihexatina, muito usada em lavouras de cítricos, testes com ratos, camundongos e coelhos revelaram malformação fetal, risco de aborto e danos à pele, à visão e ao fígado, o que levou à recomendação de banir seu uso no país.
O acefato também foi testado pelos técnicos da Anvisa. Mas liminares da 6ª Vara do Distrito Federal proibiram a agência de adotar qualquer medida restritiva contra produtos contendo cihexatina e mesmo de divulgar os resultados de seus estudos.
Novos capítulos
Dias depois, mais um capítulo na saga da saúde perdida nos labirintos da Justiça: a Anvisa foi autorizada a analisar os agrotóxicos – por enquanto.
E, em 15 de novembro, em outra reportagem de Evandro Eboli, ficamos sabendo que o Ministério da Agricultura adotou o parecer de um toxicologista, membro de uma empresa de consultoria contratado para defender os interesses da empresa e atuar no processo contra a Anvisa. Mas a assessoria de imprensa do Ministério da Agricultura nos tranqüiliza, afirmando que não adotou o parecer, apenas o encaminhou à Anvisa, e que não trabalha em parceria com a iniciativa privada nesses casos. Ah, bom!
Faltou ao Ministério mencionar que, além de especialista na área, o referido toxicologista era também um contratado da indústria. Detalhes, detalhes.
E assim, mais uma vez, o mundo se curva diante do Brasil: um único profissional consegue colocar em xeque o trabalho de toda a comunidade toxicológica e reguladora internacional, ao menos por certo tempo.
Quer saber? Viva a agricultura biológica…
Jean Remy Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
21/11/2008