Terapia celular revisada

Nos últimos 12 meses o Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da UFRJ recebeu 1.027 e-mails de pacientes e seus familiares em busca de informações sobre testes clínicos envolvendo terapia celular. Uma das perguntas mais frequentes foi: “Quantos ensaios clínicos com células-tronco existem atualmente?”

Artigo publicado este mês na revista científica Regenerative Medicine responde a essa questão e discute o futuro do setor.

A medicina regenerativa se estabeleceu como negócio de bilhões de dólares, sustentado por pilares distintos daqueles nos quais se baseiam os produtos farmacêuticos convencionais, biológicos e dispositivos médicos. Nessa área, os medicamentos são as próprias células, a menor porção de matéria viva, produzidas pelo próprio organismo humano. A expectativa é de que, transplantadas em locais e condições específicas, sejam capazes de recuperar tecidos ou órgãos acometidos por lesão ou doença.

Apesar de ser considerada ainda uma indústria pequena, tem potencial de crescimento imenso. Tal crescimento dependerá da superação de desafios específicos, incluindo a geração de tecnologias mais eficazes para a produção e manutenção das células e principalmente a comprovação de sua eficácia como procedimento terapêutico.

Do ponto de vista do paciente, os ensaios clínicos são essenciais, pois favorecem a geração de terapias mais seguras e eficazes

Enquanto outras indústrias, como a da tecnologia de informação, são caracterizadas por ciclos de curta duração, nos quais produtos podem evoluir para sucessos comerciais em questão de meses, utilizando um mínimo de capital inicial ou recursos, os ciclos no setor da saúde são tipicamente mais longos, em função da natureza da pesquisa e desenvolvimento e da necessidade de ensaios clínicos.

Do ponto de vista de regulamentação, os ensaios clínicos são obrigatórios. Na perspectiva de seu impacto sobre negócios, são também considerados caros, de alto risco e de longa duração. No entanto, do ponto de vista do paciente, são essenciais, pois favorecem a geração de terapias mais seguras e eficazes. Sua realização é, portanto, inevitável, e pode ser utilizada beneficamente na previsão dos potenciais dessa nova indústria e seus produtos.

Fase a fase

Devido à natureza altamente regulamentada do setor de medicamentos, uma maneira de antever os percalços a serem superados é analisar justamente os candidatos a terapias que ainda estão na etapa de ensaios clínicos.

ClinicalTrials.gov é a principal fonte de informação sobre testes aplicados em seres humanos, incluindo aqueles baseados nas terapias celulares. Trata-se de um repositório público criado há 10 anos pelos Institutos de Saúde dos Estados Unidos com o intuito de reunir informações sobre os ensaios clínicos realizados naquele país, mas também em outras partes do mundo, seja por instituições públicas ou privadas.

Clinicaltrials.gov
O banco de dados usado pelos pesquisadores é um repositório público dos EUA que reúne informações sobre os ensaios clínicos realizados no país e em outras partes do mundo. A busca resultou em uma seleção de 2.724 ensaios clínicos de terapia celular realizados entre 2000 e 2010.

Pesquisadores ingleses liderados por Chris Mason identificaram nessa base de dados, entre o período de fevereiro de 2000 e junho de 2010, 17.362 resultados com o termo “terapia celular”. Todos os ensaios selecionados foram verificados um a um, a fim de remover entradas duplicadas e para selecionar apenas aqueles realmente baseados na aplicação de células.

Isto resultou na seleção dos 2.724 ensaios clínicos de terapia celular realizados entre 2000 e 2010. Os autores utilizaram o critério do Instituto Britânico de Padronização (British Standard Institute) para definir terapia celular: plataforma tecnológica baseada na aplicação terapêutica de células, independente do tipo celular ou indicação clínica.

799 desses estudos foram identificados como “concluídos”, restando 1.925 estudos em andamento.

49% dos ensaios em andamento estão em fase 1 (na qual se analisa a segurança do procedimento em pequenos grupos), 40% em fase 2 (em que são avaliadas a eficácia e a segurança do tratamento) e somente 11 em fases 3/4 (quando os testes são realizados em um grande número de pacientes, em condições controladas, para reconfirmar eficácia, segurança e obter significância estatística, avaliação de uso, riscos e benefícios). É importante notar que um candidato a terapia celular pode estar presente em uma ou mais fases, dependendo do seu progresso durante o período.

Algumas constatações

O número relativamente pequeno de ensaios clínicos em fases 3/4 (275) reflete mais a imaturidade da plataforma tecnológica que tem a célula como base terapêutica do que a evolução da medicina regenerativa nos últimos anos. Também é precoce especular se as terapias baseadas em células têm performance melhor ou pior do que outros medicamentos baseados, por exemplo, em moléculas.

Se a percentagem global de sucesso dos medicamentos convencionais fosse aplicada aos ensaios clínicos com terapia celular, seria possível sugerir que cerca de 170 dos atuais candidatos a terapias celulares deverão ser regulamentados nos próximos 15 anos.

Dentre os 2.274 ensaios, 46% envolviam transplantes autólogos (ou seja, células dos próprios pacientes), 41% eram alogênicos (quando doador e receptor são indivíduos distintos), 3% uma combinação de células autólogas e alogênicas e 1% xenotransplantes (quando doador e receptor são de espécies distintas).

As proporções semelhantes de estudos com células autólogas e alogênicos indica que não há uma preferência clara, apesar de os modelos de negócio serem muito diferentes, ou seja, serviço, no caso de terapias com células autólogas, versus produto universal, no caso de terapias alogênicas. Isso, em parte, reflete a diversidade dos patrocinadores dos testes, que incluem tanto médicos quanto empresas.

Apenas dois ensaios utilizaram materiais à base de células humanas cultivadas em associação com células não-humanas. Isso pode refletir preocupações sobre o potencial de transmissão aos pacientes de vírus endógenos de animais, como por exemplo, porcos, ou com a contaminação por moléculas de células não-humanas (proteínas ou açúcares, por exemplo) capazes de causar uma resposta imunológica exacerbada no paciente submetido à terapia.

Laboratório do Instituto de Células-Tronco e Medicina Regenerativa da Universidade de Washington
Laboratório do Instituto de Células-Tronco e Medicina Regenerativa da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. O país responde pela maior parte dos ensaios clínicos baseados em terapia celular registrados no ClinicalTrials.gov. A pesquisa na área é cara e demorada, mas os resultados são promissores. (foto: Clare McClean)

Curiosamente, existem números significativamente maiores de terapias com células transientes em oposição ao transplante com células permanentes. Um total de 50% dos ensaios envolveu células que são tipicamente eliminadas num certo número de dias ou semanas após o implante – isto é, apenas transitoriamente sobrevivem in vivo.

Assim, seu mecanismo de ação não é como células de substituição permanente, mas somente como entidades que disparam mecanismos de reparo ou proteção com data de validade. Apenas 5% das terapias foram definidas como um implante permanente, em que as células administradas ou sua descendência permanecem in vivo por diversos anos.

O maior número de ensaios (72%) é registrado nos Estados Unidos, enquanto apenas 23% são especificados como de fora dos EUA. O país de registro, no entanto, não define a localização do ensaio, uma vez que ser registrado nos EUA, por exemplo, pode não significar necessariamente que seja realizado inteiramente lá, como é o caso de ensaios multicêntricos multinacionais. Ensaios de mais de 35 países diferentes, incluindo Austrália, Brasil, França, Alemanha, Índia e Reino Unido estão registrados no ClinicalTrials.gov.

Esta é a primeira vez que uma avaliação sobre ensaios de terapia celular é realizada

Esses dados são encorajadores para a indústria emergente de terapia celular, dada a fase inicial dessa plataforma tecnológica, o expressivo número de ensaios e a gama crescente de indicações médicas.

Esta é a primeira vez que uma avaliação sobre ensaios de terapia celular é realizada. Os dados obtidos poderão auxiliar cientistas, profissionais de saúde, empresas e governos a respeito dos rumos desse novo setor da área de saúde. A análise regular também irá auxiliar os pacientes a evitar os perigos do turismo de células-tronco.

Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro