A coluna deste mês foi motivada por um texto publicado na Ciência Hoje sobre o projeto HAARP (sigla em inglês para Programa de Pesquisa da Aurora Ativada por Alta Frequência). Em alguns meios de comunicação circula a informação de que se trata de protótipo para um sistema de armas similar ao Guerra nas Estrelas, programa militar da era Reagan (Ronald Reagan governou os Estados Unidos de 20/01/1981 a 20/01/1989). Buscas em bases de dados confiáveis indicam que essas notícias são uma mistura de inconsistentes teorias conspiratórias com pseudociência, na linha daquilo que Marcelo Knobel e Vera Rita da Costa tão bem retrataram.
Em setembro de 2012, escrevi aqui na coluna sobre os efeitos benéficos e danosos da ionosfera na transmissão de ondas de rádio. Na busca que fiz para avaliar o projeto HAARP, que tem a ver com esses efeitos, descobri trabalhos instigantes sobre os efeitos de terremotos em algumas propriedades da ionosfera.
A questão foi levantada pela primeira vez em 1969, mas só a partir dos anos 1990, com os notáveis desenvolvimentos tecnológicos resultantes do projeto HAARP e congêneres, essa área do conhecimento experimentou significativo salto na quantidade de artigos publicados. Vejamos o que se sabe sobre o assunto.
Camadas da atmosfera
A atmosfera terrestre é uma camada gasosa que envolve nosso planeta e apresenta comportamento funcional diretamente ligado à nossa vida. Argônio, nitrogênio e oxigênio, seus principais constituintes, se mantêm em volta da Terra pela força da gravidade.
Entre a superfície terrestre e a altura próxima de 100 quilômetros, a temperatura oscila entre 30 graus Celsius (na superfície) e cerca de 100 graus Celsius negativos um pouco abaixo de 100 quilômetros. Na altura de 10 quilômetros aproximadamente, a temperatura é da ordem de 40 graus Celsius negativos, mas a 50 quilômetros volta a ser igual a 30 graus. Diminui novamente até 100 quilômetros e, a partir daí, cresce abruptamente até passar de 1.000 graus Celsius na altura de 300 quilômetros.
Em função dessa variação de temperatura e de outras propriedades físico-químicas, a atmosfera é dividida em quatro camadas: a troposfera fica abaixo de 12 quilômetros; entre 12 e 45 quilômetros, temos a estratosfera; a mesosfera vai até aproximadamente 100 quilômetros, onde tem início a termosfera.
Quando incide sobre a atmosfera, a luz solar produz dois efeitos imediatos, que dependem de sua energia e da densidade gasosa. Em primeiro lugar, os raios solares provocam oscilação das moléculas e dos átomos nela presentes, resultando no seu aquecimento.
Quando a energia do raio solar é suficientemente grande e a densidade gasosa suficientemente pequena, há ionização de átomos e moléculas, ou seja, elétrons lhes são arrancados, e a atmosfera se transforma em plasma, matéria que tem o mesmo número de elétrons livres e íons. É em razão desses íons que nasceu a denominação ionosfera, camada da atmosfera que se estende da altitude de aproximadamente 50 quilômetros a cerca de 1.000 quilômetros.
Assim como a atmosfera foi dividida em camadas conforme a variação de temperatura com a altitude, a ionosfera foi dividida conforme a densidade de elétrons livres: entre 60 e 95 quilômetros, tem-se a camada D; entre 95 e 150 quilômetros, a camada E; e, na sequência, a camada F. Em geral a camada F é subdividida em F1 (parte inferior) e F2 (parte superior), mas estudos realizados nas duas últimas décadas indicam que na região equatorial há uma terceira camada, acima da F2.
Sendo um plasma, a ionosfera é caracterizada por quatro parâmetros: densidade de elétrons, temperatura dos elétrons, temperatura dos íons e frequência crítica, abaixo da qual a radiação eletromagnética é refletida e acima da qual ela atravessa a ionosfera. Obviamente as camadas D, E e F têm seus valores característicos. A densidade eletrônica e a frequência crítica são os parâmetros mais importantes nos processos de interação do plasma com a radiação eletromagnética, razão pela qual são os mais estudados.
Anomalias ionosféricas e terremotos
A reconhecida complexidade do plasma ionosférico justifica o fato de até hoje vários fenômenos observados continuarem sem explicação unanimemente aceita pela comunidade científica. É o caso de algumas anomalias ionosféricas correlacionadas com a ocorrência de terremotos. Os primeiros registros foram obtidos nos anos 1960, mas só a partir dos anos 1990, com o desenvolvimento de recursos tecnológicos apropriados, é que a área passou a ser encarada seriamente.
A questão é tão séria que o Centro Nacional de Estudos Espaciais, da França, fabricou um microssatélite especialmente preparado para investigar alterações na ionosfera causadas por efeitos sísmicos e por atividades antropogênicas como transmissão de ondas com alta frequência ou com frequência muito baixa, as famosas ondas VLF (na sigla em inglês). Denominado Demeter (acrônimo em inglês de Detecção de Emissões Eletromagnéticas Transmitidas de Regiões com Terremotos) e lançado em 2004, o microssatélite transporta sensores para medidas de composição iônica, densidade eletrônica e temperatura do plasma.
Observações feitas com satélites no início dos anos 1990 e confirmadas recentemente pelo Demeter mostraram que a densidade de elétrons em escala global parecia uma colcha de retalhos com vários buracos. Tais irregularidades não puderam ser explicadas com os modelos tradicionais, que levam em conta apenas a ação da radiação solar sobre a ionosfera.
A correlação com terremotos foi logo estabelecida, mas os mecanismos responsáveis pelo fenômeno continuam sendo debatidos na literatura, apesar da grande quantidade de dados acumulados com os receptores usuais e agora também com o sistema de posicionamento global (GPS), que permite a medida do conteúdo total de elétrons (TEC, na sigla em inglês).
Na literatura especializada, esse processo é conhecido como medida GPS TEC. No diagnóstico da ionosfera para determinar sinais precursores de terremotos, mede-se a diferença de cada medida TEC com a média das medidas dos 15 dias anteriores.
Para vários terremotos analisados, foram observadas diferenças significativas entre essas duas medidas alguns dias antes do terremoto. Só para citar um exemplo, a 6 de maio de 2008, seis dias antes do terremoto de Wenchuan, na China, a diferença do conteúdo total de elétrons apresentou um pico negativo e, no dia 9, um pico positivo. Também a frequência crítica da camada tem apresentado anomalias em dias anteriores à ocorrência de terremotos em diferentes localidades da Terra.
À espera de uma teoria unificadora
Os resultados mencionados acima – obtidos por diferentes pesquisadores, em diferentes locais, para diferentes tipos de terremoto – constituem uma extraordinária base de dados à espera de uma teoria unificadora. Há quem atribua as irregularidades na densidade de elétrons ao processo de ionização da atmosfera próxima à superfície terrestre causado pela liberação de radônio durante o movimento tectônico que antecede o terremoto.
Pesquisadores do Instituto de Pesquisa Espacial da Academia Russa de Ciências são os principais defensores dessa hipótese. Sendo radioativo, o radônio tem a propriedade de ionizar o ar à sua volta. Essa ionização se propagaria a partir da superfície terrestre na direção da ionosfera.
Há quem não acredite que a quantidade de radônio liberada seja suficiente para provocar os efeitos observados. Estes sugerem que a ionização se inicia com a liberação de cargas positivas dos minerais, resultante do processo de atrito entre as camadas tectônicas. As medidas realizadas até o momento suportam as duas hipóteses. A medida decisiva ainda não foi idealizada.
Até o início dos anos 1970, a ionosfera era vista e investigada de modo passivo, como elemento essencial nos processos de transmissão e recepção de ondas eletromagnéticas, sobretudo ondas de rádio. Ela era o que era em função de suas interações com a radiação solar e com o campo magnético terrestre, as quais modelavam seu comportamento.
Mas há 45 anos o homem passou a exercer papel ativo sobre o comportamento da ionosfera por meio de ondas de rádio de alta frequência e alta potência. Os emissores dessas ondas, entre ele o projeto HAARP, passaram a ser conhecidos como aquecedores ionosféricos e deram origem a inúmeras inovações tecnológicas. Algumas dessas inovações estão hoje a serviço da terceira fase de utilização da ionosfera, ou seja, como meio de sinalização prévia da ocorrência de terremotos. Não será surpresa se, assim como no caso dos sismógrafos, uma rede de receptores tipo Demeter for instalada em escala mundial.
Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana