Todos os caminhos levam à cama

Um dos deveres universais de pais e mães é lembrar aos filhos que eles já deveriam estar dormindo, visto o adiantado da hora — ou o desejo acumulado de umas horas de tranqüilidade. E por mais que os filhos protestem, geralmente os pais têm razão: dormir é tão importante que, para os casos de rebeldia infantil ou complacência dos pais, a natureza tem não uma, mas duas soluções para garantir que o sono não tardará.

A primeira é o relógio biológico, mecanismo que regula o horário de variações da temperatura do corpo, da secreção de hormônios e do próprio sono. O relógio situa-se em um dos núcleos do hipotálamo, estrutura do cérebro que acompanha e regula o estado interno do corpo, e seus ’ponteiros’ são a atividade elétrica dos neurônios do núcleo, que aumenta e diminui periodicamente: a cada 24 horas, ajustadas pela luz do dia, esses ’ponteiros’ dão uma volta completa.

É esse relógio interno, por meio da sua ação sobre várias outras estruturas, que sugere ao resto do cérebro quando seria uma boa hora para, por exemplo, dormir. Mas sugerir um travesseiro, como qualquer mãe sabe, não é suficiente para colocar ninguém na cama. Basta que a brincadeira esteja boa para se desobedecer ao tique-taque do relógio biológico, embora mudanças de fuso horário ou de turno no serviço também sejam conhecidos esculhambadores da regulação do sono.

Mesmo assim, não se pode adiar o sono eternamente: o cérebro vem cobrar as horas atrasadas, para ’zerar’ a conta do sono. Esse é o segundo mecanismo que garante que ninguém fique muito tempo longe da cama: possivelmente graças ao acúmulo progressivo no cérebro de substâncias ’soporíferas’ enquanto se está acordado, quanto menos se dorme, mais sono se sente.

O fato de o relógio do hipotálamo ajustar o horário do sono às 24 horas do dia mas não determinar quando ele acontece há muito sugeria aos cientistas que os dois mecanismos de regulação do sono — o relógio biológico e a falta de sono acumulada — seriam independentes um do outro. Razão número um: quando o sono atrasado é muito, dane-se o relógio biológico: qualquer hora é hora de dormir. Razão número dois: quando retirados do cérebro, e portanto afastados de qualquer necessidade de sono, os neurônios do relógio biológico mantêm a capacidade de ’bater’ regularmente, ficando mais e depois menos ativos a cada 24 horas, aproximadamente.

Mas talvez os dois mecanismos não sejam tão independentes, afinal. Um estudo holandês publicado em setembro na revista Nature Neuroscience mostra, pela primeira vez, que a atividade dos neurônios do núcleo supraquiasmático do hipotálamo — o tal relógio biológico — é, sim, afetada pelo sono. Johanna Meijer e seus colegas demonstraram que, no relógio biológico dos ratos, a atividade dos neurônios é maior ou menor não só segundo a hora do dia, como já era sabido, mas também conforme o animal está acordado, dormindo profundamente ou sonhando.

Se os neurônios do núcleo supraquiasmático são afetados pela própria função que eles regulam — o sono –, não podem mais ser considerados um reloginho independente, acima de qualquer controle, capaz de subjugar o funcionamento de todo o cérebro. Que diferença isso faz? Talvez nenhuma, além de demonstrar que os neurônios do relógio biológico são como todos os outros do cérebro: sua atividade varia conforme o estado de sono do dono.

Por outro lado, agora é preciso considerar que sono de mais ou de menos deve interferir nas informações que o relógio biológico envia cérebro afora. Além disso, se o relógio é sensível ao sono, talvez também o sono — ou sua ausência — possa, assim como a luz do Sol, mexer nos ponteiros do próprio relógio biológico e garantir seu ajuste não só às 24 horas do dia, mas também às necessidades do dono. Talvez aqui estejam escondidos alguns dos mistérios da desregulação dos ritmos do corpo quando os olhos ficam abertos tempo demais.

E se nem as sugestões do relógio biológico nem a sonolência crescente derem conta do recado, resta, é claro, aquele terceiro mecanismo. Ainda bem que, passada a teimosia da infância, os dois primeiros mecanismos que nos fazem dormir costumam bastar. Ia ser duro continuar tendo que ouvir até hoje, no melhor da novela, aquela temida musiquinha com que a minha mãe nos mandava para a cama:

“Já é hora de dormir,
não precisa mamãe mandar
Um bom sono pra você
E um alegre despertar…”

Fonte: Deboer T, Vansteensel MJ, Détári L, Meijer JH. Sleep states alter activity of suprachiasmatic nucleus neurons. Nature Neuroscience , setembro de 2003.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia