Trair e coçar, é só começar

“Trair e coçar, é só começar”. Esse é o título da peça de teatro do grande ator e autor Marcos Caruso, sucesso de público há 20 anos, assistida por mais de 4 milhões de pessoas no Brasil. Pelo menos a segunda parte é uma verdade científica: a gente sente vontade de coçar uma parte do corpo, e isso nos dá tanto prazer pelo alívio propiciado, que vamos em frente muitas vezes até nos ferir, e a coceira inicial se transforma em inflamação e dor.

A coceira existe em praticamente todos os vertebrados terrestres (foto: Adrian Pingstone ). 

Qual é a explicação dessa misteriosa sensação que chamamos coceira ou prurido? Por que ela existe em praticamente todos os vertebrados terrestres? A neurociência tem se preocupado com esse tema, não apenas pela curiosidade que evoca, mas porque há condições patológicas em que a coceira se torna crônica e passa a causar verdadeiras escaras e mutilações. As causas são variadas, de uma reação alérgica extensa até distúrbios psiquiátricos como o transtorno obsessivo-compulsivo.

A coceira é uma sensação aparentada à dor, mas diferente desta por evocar comportamentos distintos e por ser veiculada e processada por neurônios diferentes. Além disso, enquanto a dor é um sistema de alarme de que nosso corpo está ameaçado, gerando uma carga emocional negativa, a coceira indica a presença de um estímulo irritante leve, que geralmente nos obriga a coçar para removê-lo. A carga emocional, nesse caso, é de um desconforto seguido de intenso prazer. A reação provocada por uma dor súbita é de retirada e afastamento da parte do corpo atingida. Na coceira é o contrário: o indivíduo leva a mão para a região estimulada e a esfrega repetidamente. O caráter hedonístico da coceira e suas dimensões psicológicas (eróticas, muitas vezes) têm contornos até engraçados.

Um grupo de pesquisadores alemães liderados por Volker Niemeier, há alguns anos, fez uma pesquisa curiosa: chamou voluntários para assistirem a uma conferência sobre a coceira, na qual se apresentavam transparências presumivelmente pruritogênicas (fotos de pulgas, pele arranhada, reações alérgicas), e depois fotos relaxantes, indutoras de bem-estar (crianças com a pele suave, almofadas fofas, pessoas tomando banho).

Durante a conferência, patrocinada por uma rede de televisão, o público era filmado por inúmeras câmeras posicionadas estrategicamente no auditório, sem saber que se tratava de uma pesquisa. A análise do filme feita posteriormente permitiu avaliar quanto o público se coçou antes, durante e depois da conferência, e revelou que esse comportamento foi mais freqüente durante a palestra, e mais comum durante as transparências pruritogênicas do que durante as relaxantes, sugerindo uma forte indução psicológica.

Neurônios da coceira
Alguns dos neurônios que veiculam a sensação de coceira já são conhecidos. Ficam posicionados em gânglios próximos à coluna vertebral e emitem longas fibras nervosas que se espalham por toda a pele. Na extremidade dessas fibras existem proteínas que reconhecem seletivamente a histamina, uma substância liberada por células do sistema imunitário quando ocorre uma reação inflamatória ou alérgica. O “reconhecimento” da histamina significa que ocorre uma reação química que, por sua vez, gera sinais elétricos conduzidos pelas fibras à medula espinhal, e desta ao cérebro.

A histamina é bem conhecida como mediador das alergias, e são anti-histamínicos a maioria dos antialérgicos consumidos pela população. Outros mediadores químicos estão envolvidos, alguns deles liberados até pelos terminais das fibras nervosas, o que causa uma coceira “neurogênica” que talvez explique a forte influência psicológica sobre a sensação e o ato de coçar.

Mas se coçar é só começar, o que acontece depois que a pele acusa o estímulo disparador? Essa questão foi analisada por uma equipe japonesa liderada por Hideki Mochizuki. O grupo utilizou voluntários cuja atividade cerebral era registrada por um tomógrafo de emissão de pósitrons, equipamento capaz de gerar uma imagem das regiões cerebrais ativas enquanto os pesquisadores pingavam uma solução de histamina na pele do pé.

Os resultados revelaram atividade em áreas sensoriais do córtex cerebral (que sinalizam a presença do estímulo pruritogênico), em áreas motoras (relacionadas à programação do ato de coçar), em áreas de processamento emocional (indicadoras do incômodo da coceira), e outras que monitoram o estado geral do corpo. Mais interessante: quando utilizavam um jato prolongado de água gelada (muito gelada!) para aliviar a coceira, ativavam uma região subcortical sabidamente envolvida com a inibição da dor, e agora também revelada como inibidora da coceira, a chamada grísea periaquedutal.

O quadro então se fecha: a dor do frio inibe a coceira – a dor em geral o faz. Por isso raspamos a pele com as unhas para aliviar o prurido que nos incomoda. Raspamos com força, o que seria normalmente um estímulo doloroso. Raspamos, raspamos, sentimos aquele alívio prazeroso. Coçar é só começar. Difícil é parar… SUGESTÕES PARA LEITURA
W. Niemeier e colaboradores (2000) Observations during an itch-inducing lecture. Dermatology and Psychosomatics , vol. 1 (suppl. 1), pp. 15-18.
H. Mochizuki e colaboradores (2003) Imaging of central itch modulation in the human brain using positron emission tomography. Pain , vol. 105, pp. 339-346.
A. Ikoma e colaboradores (2006) The neurobiology of itch. Nature Reviews Neuroscience , vol. 7, pp. 535-547.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
23/02/2007