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Há tempos venho tentando achar assunto para mais uma coluna otimista, que seria apenas a segunda desde a estreia desta coluna. Mas, francamente, está difícil. O clima este ano parece ter resolvido socorrer o Painel Intergovernamental de Mundanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), esmerando-se em fornecer provas de que as suas previsões têm fundamento, especialmente aquelas relativas ao aumento da frequência de eventos extremos.

O clima este ano parece ter resolvido socorrer o IPCC

Senão, vejamos: numa amostra dos eventos no front interno, tivemos cidades riscadas do mapa no interior do Nordeste por conta de violentas enchentes, que coincidiram com uma elevação da temperatura do mar da região, graves deslizamentos no Rio de Janeiro e ao longo do litoral até Santos e forte seca no Centro-oeste.

Chama a atenção ainda o aumento de 179% no número de focos de queimadas até 13 de agosto em relação ao mesmo período em 2009, a maioria nas regiões Norte e Centro-oeste do país, com uma amarga ironia: uma queimada gigantesca consumiu parte da cidade de Marcelândia (MT), destruindo 80% das serrarias e madeireiras desse município, além de 200 casas.

Tivemos ainda  frio alpino no sul do Brasil com neve em muitas cidades, quando o normal vinha sendo haver neve em anos alternados em uma cidade aqui agora, e outra ali não sei quando. E ainda faltam vários meses para 2010 acabar…

No exterior

No front externo, eventos de dimensões épicas. No início do ano, uma onda de frio polar transformou a Grã-Bretanha numa mancha uniformemente branca no mapa. Mancha imóvel, ao contrário do iceberg de quatro vezes o tamanho da ilha de Manhattan que se desprendeu esta semana no oceano Ártico, por sua vez modesto em relação ao de 2.500 km2 que se desprendeu no polo oposto, na Antártica, em fevereiro.

Fumaça na Rússia
Fumaça decorrente dos incêndios florestais que ocorreram a Rússia em julho de 2010 impedem o funcionamento do Aeroporto Internacional Cheremetievo, nos arredores de Moscou. O fogo foi decorrente da seca e das altas temperaturas – 2010 teve o verão mais quente já registrado naquele país (foto: Sergei Gutnikov).

Houve ainda clima atípico no Canadá e nos Estados Unidos e calor escaldante em toda a Europa. A Rússia se destacou com a pior seca em mil anos, 40 graus à sombra na praça Vermelha, com fumaça digna do Centro-oeste brasileiro em época de queimada, mas devido a milhares de incêndios florestais que obrigaram 165 mil bombeiros a atuar numa área de cerca de 1.800 km2 para combater as chamas.

No fechamento desta coluna, as chamas já atingiam áreas florestais ainda restritas devido à contaminação radioativa pelo acidente de Chernobyl, em 1986. A contagem dos mortos chegava então a 65, e os prejuízos já eram da ordem de 15 bilhões de dólares. Ninguém teve tempo ainda de calcular as emissões de carbono que o megaincêndio provocou.

A civilização que já foi à Lua e inventou o iPod descobre que nada pode fazer para ajudar os flagelados

A China sofreu com enchentes e deslizamentos que mataram milhares de pessoas, as altas temperaturas no Japão mataram cerca de 60 pessoas, mas foram as enchentes no Paquistão que elevaram as dimensões do desastre de épicas para bíblicas.

Foram afetadas 20 milhões de pessoas, o que tornou a catástrofe maior do que os três megadesastres da última década juntos: o tsunami de 2004 no oceano Índico e os terremotos de 2005 na Caxemira e de 2010 no Haiti.

No Paquistão, estima-se até aqui a destruição de 360 mil casas e já há milhares de mortos e milhões de indivíduos sem comida nem abrigo, isolados pelas águas e pelos deslizamentos, disputando cada palmo de solo não alagado. E a mesma civilização que já foi à Lua só de birra e inventou o iPod descobre que não pode fazer nada para ajudar os flagelados. Mesmo que o tempo melhore e os helicópteros com socorros finalmente decolem, será uma gota no oceano de necessidades.

Vítimas das enchentes no Paquistão
Paquistaneses resgatados por helicóptero norte-americano em missão de evacuação por ocasião das enchentes que afetaram aquele país em agosto de 2010. Cerca de 20 milhões de pessoas foram afetadas por esse evento extremo (foto: Horace Murray, U.S. Army).

Mais eventos extremos

A maior parte dos eventos aqui descritos na Ásia e Europa teria, segundo os meteorologistas, uma origem comum: a imobilidade atípica da corrente de Jato, uma corrente de ar muito veloz que corre na troposfera em direção ao leste e regula o clima europeu e asiático. Não se sabe ao certo o que provocou o fenômeno: ele é compatível com os modelos que preveem mais eventos extremos devido ao efeito estufa, mas alguns especialistas defendem que poderia ser causado pela baixa atividade solar.

Sempre houve secas, incêndios florestais, enchentes e deslizamentos, com gravidade inversa à sua frequência. Um amigo engenheiro uma vez me explicava que, para um projeto de grande loteamento em área de alta precipitação e declividade, ele tinha apresentado ao cliente um orçamento com três opções no quesito “obras de drenagem e escoamento”: obras com calhas e tubulações dimensionadas para chuvas de intensidade esperada a cada 20, 50 ou 100 anos.

As últimas eram naturalmente as mais caras, e a opção realizada pelo cliente definirá quanto tempo se pode estimar que o loteamento sobreviverá até ser levado pelas águas. Isto é que é sustentabilidade, no sentido físico. Note que não há garantias: enquanto o cliente faz suas contas, o terreno pode ser liquefeito por uma chuva daquelas que só se espera a cada 500 anos e que resolveu cair justo hoje.

Algumas decisões humanas não provocam os desastres, mas amplificam suas consequências

Isso nos leva a um aspecto importante dos desastres ambientais, sejam eles de causas atribuíveis ao efeito estufa causado pelo homem ou de origem sísmica – força que ainda não conseguimos alterar com nossas atividades.

Algumas decisões humanas não provocam necessariamente os desastres, mas amplificam suas consequências – como construir (ou não) a beira-rio, beira-mar ou beira-precipício, em ladeiras, alagados, pés de vulcão e outras áreas de risco. Quanto maior a população, maior a pressão para a ocupação dessas áreas, maior o número de vítimas potenciais.

Um historiador, cujo nome infelizmente não registrei, citou um texto do tempo da colônia que relatava que índios do interior do atual estado da Bahia, perguntados sobre por que não haviam feito oposição à instalação de uma vila bandeirante à margem do rio, dentro do seu território, responderam: aquele lugar não nos pertence, pertence ao rio. No mesmo local, a cidade em que a vila bandeirante se transformou é regular e parcialmente destruída pelas cheias desde então.

Bem que os índios avisaram.

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro