Tupi or not tupi, that is the question

 

Há alguns meses abordamos na coluna a expansão Bantu que ocorreu na África 3 a 5 mil anos atrás. Pois bem, na mesma época estava ocorrendo paralelamente um importante movimento demográfico no Brasil pré-histórico: a expansão Tupi.

É fato que quando os portugueses chegaram ao Brasil, em 1500, havia índios falando dialetos do tronco linguístico tupi em todo o território, estendendo-se, com a família tupi-guarani, até terras que hoje pertencem a Paraguai, Bolívia, Peru, Argentina e Uruguai.

As polêmicas ainda são muitas, mas o consenso é que povos identificados como Tupi, pelo tronco linguístico e por características ceramistas e agriculturalistas, apareceram há muitos séculos, na Amazônia. Em um processo de expansão populacional e territorial, eles paulatinamente ocuparam todo o enorme território que dominavam em 1500. As rotas seguidas também são controversas, bem como as datas.

Em artigo publicado em dezembro último nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, a equipe do Museu Nacional liderada por Rita Scheel-Ybert apresentou datações científicas que evidenciam a presença de populações tupi-guarani no Sudeste brasileiro há cerca de 2900 anos. Assim, confirma-se que a expansão Tupi no Brasil e a expansão Bantu na África foram temporalmente paralelas, embora obviamente independentes.

O Manifesto Antropofágico
Em 1557 apareceu na Europa o livro Duas viagens ao Brasil, escrito pelo aventureiro mercenário alemão Hans Staden (1525-1579), relatando suas peripécias no Novo Mundo. Na obra – a primeira publicada na Europa sobre o nosso país –, Staden conta como foi feito prisioneiro pelos índios Tupinambá (do tronco Tupi) que pretendiam devorá-lo. Segundo ele, durante muitos meses viveu em grande ansiedade, enquanto testemunhava o consumo de outros prisioneiros. No final, conseguiu escapar em um navio pirata francês.

A divulgação dessa versão do Brasil como o país da antropofagia foi mais tarde reforçada pelos relatos de ulteriores viajantes que estiveram por aqui no século 16, como o francês Jean de Léry (1534-1611) e outros. Apregoavam o conceito de que os índios canibais comiam inimigos valentes, supondo que assim estavam assimilando suas qualidades.

Abaporu, fascinante quadro da pintora Tarsila de Amaral (1886-1973), a tela brasileira mais valorizada no mundo. Em 1995, ela foi vendida por US$ 1,5 milhão ao colecionador argentino Eduardo Costantini. Encontra-se atualmente exposta no Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba). Segundo história corrente, a tela, criada por Tarsila como presente de aniversário a seu marido Oswald de Andrade, empolgou-o e motivou o Manifesto Antropofágico.

Inspirado por essas estórias, o escritor Oswald de Andrade (1890-1954) lançou em 1928, no primeiro número (chamado “primeira dentição”) da Revista de Antropofagia um artigo com o título “Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”, no qual lançava o Manifesto Antropofágico.

O autor propunha “devorar” a cultura estrangeira e digeri-la criticamente, transformando-a em produção brasileira, criativa, única e própria. Aparentemente, a ideia do manifesto surgiu quando sua esposa, a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973), deu-lhe como presente de aniversário a hoje famosa tela Abaporu (do tupi aba = homem; e poru = que come).

Ainda em 1928, foi publicado o romance Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Nascido da pena de Mário de Andrade (1893-1945), o livro é fruto intelectual do Movimento Antropofágico. Macunaíma é o próprio Brasil. Nasce índio e preto, e transforma-se em branco ao longo da estória (ver figura mais abaixo). É passivo e indolente e seu refrão é “ai, que preguiça!”.

Circula pela internet a alegação de que, em tupi-guarani, aique significa “preguiça” – assim, Macunaíma seria duas vezes preguiçoso. Tentei, sem sucesso, verificar esse dado. Mas, como dizem os italianos, si non è vero, è ben trovato (se não é verdade, ainda assim é uma boa estória).

Cultura de Macunaíma
No epílogo da biografia imaginária A correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queiroz (1845-1890) inclui uma carta a Eduardo Prado, datada de 1888, observando que não compreendia por que os brasileiros tinham mania de copiar tudo da Europa. Vejamos um trecho:

“… os brasileiros podiam nesse dia radiante, fundar a civilização que lhe apetecesse, com o pleno desafogo com que um artista pode moldar o barro inerte que tem sobre a tripeça de trabalho e fazer dele, à vontade, uma vasilha ou um deus. Não quero ser irrespeitoso, caro Prado, mas tenho a impressão que o Brasil se decidiu pela vasilha”.
O autor conclui a carta proclamando: “Mas no dia ditoso que o Brasil, por um esforço heróico, se decidir a ser brasileiro, a ser do novo mundo – haverá no mundo uma grande nação.”

O brilhante intelectual português não foi o primeiro nem o último a observar o complexo de inferioridade do brasileiro, a sua subserviência a tudo que vem de fora, a sua insegurança em criar algo realmente verdadeiramente seu. Parte da responsabilidade cabe ao nosso passado colonial.

Fragmento de ilustração por Rita Loureiro do lindo livro da Editora Villa Rica Macunaíma – o herói sem nenhum caráter, pertencente à biblioteca do colunista. Escrito por Mário de Andrade, o romance tem inspiração antropofágica. Macunaíma, embora indígena (provavelmente do tronco Tupi), nasceu “preto retinto”. Um dia, ele e seus irmãos tomaram banho em uma lapa no rio Negro. Ele saiu branco-louro de olhos azuizinhos, um irmão saiu cor de bronze e o outro saiu preto. Assim, Mário de Andrade conta a origem do povo brasileiro a partir das três raízes ancestrais: ameríndia, africana e europeia. E sugere que o branco brasileiro já foi negro um dia…

Outra parte, não independente da primeira, cabe à nossa cultura Macunaíma, a nossa passividade, indolência, preguiça e esperteza. Afinal, para que ter o trabalho de criar algo se podemos importar o produto finalizado? O preço da imitação é alto e a eficiência não é ideal, mas na esfera dos negócios é só repassar os custos para o consumidor e deixar as gerações futuras lidarem com qualquer consequência. O produto final é um ambiente empresarial hostil a inovações brasileiras e aberto ao colonialismo tecnológico do dito primeiro mundo

O interessante é que nossas empresas já forneceram amplas evidências de que são capazes de criar excelente tecnologia made in Brazil, que competem de igual para igual no mercado aberto mundial. A Petrobras, a Embraer e várias outras histórias de sucesso estão aí para provarem esse ponto.

Temos também exemplos abundantes dos desastres de transplantes de pacotes tecnológicos estrangeiros, como exemplifica a nossa pobre indústria automobilística. Enquanto pagamos pelos nossos automóveis preços entre os mais caros do mundo, a Índia assombra o planeta com o Tata Nano, carro concebido e construído inteiramente naquele país, vendido por menos de dois mil dólares.

Ciência universal e tecnologia Tupi
O Brasil está em uma encruzilhada neste início de século 21. Sabe muito bem que o domínio da informação tecnológica é o principal critério competitivo na sociedade mundial. Mas como obter essa tecnologia? Continuar, como fez no passado, a transplantar para cá técnicas e processos americanos e europeus caros, mal adaptados à nossa civilização tropical e muitas vezes defasados? Ou inovar com tecnologia original, própria, endógena?

O brilhantismo especial do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade é que ele não se limita a ser diagnóstico, a apontar problemas – ele oferece uma solução, é terapêutico! E a solução é devorar e metabolizar o conhecimento científico estrangeiro para criar tecnologias próprias e novas nos trópicos. A saída é a antropofagia!

Abram-se as comportas da ciência: escancaremos as nossas fronteiras para pesquisadores estrangeiros, enviemos nossos alunos para treinamento no exterior, equipemos os nossos laboratórios de pesquisa com o que há de melhor no mundo. Devemos devorar, digerir e metabolizar tudo de científico que o primeiro mundo tenha a nos oferecer.

Mas vamos prestigiar e priorizar a tecnologia brasileira, feita em casa. Criemos aqui o que verdadeiramente precisamos, em vez de importar pacotes fechados que nos são vendidos sob o condescendente rótulo de “transferência de tecnologia”.

Dizia o grande antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987) que “situações brasileiras precisam de soluções brasileiras”. Talvez, no mundo globalizado e complementar do século 21, tal prescrição não seja possível. Entretanto, devemos manter suas palavras em mente e sempre buscar a tecnologia nacional!


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
10/04/2009