Um caso especial de concordância

Volto à concordância verbo-nome, de que falei aqui há dois meses. Um caso, em especial, merece comentário à parte: o do sujeito posposto.

Os gramáticos são unânimes em atestar (e aceitar) que o verbo concorde apenas com o elemento mais próximo de um sujeito composto, quando este está colocado depois do verbo. O exemplo clássico é ‘Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão’. Mas há outros: ‘Que te seja propício o astro e a flor…’; ‘Habita-me o espaço e a solidão’ – ambos citados por Cunha e Cintra na Nova gramática do português contemporâneo, de 1985.

O que ocorre nesses casos, segundo os gramáticos, é que o verbo concorda apenas com um dos nomes, o mais próximo. Nos casos acima, com ‘céu’, com ‘astro’ e com ‘espaço’, em vez de concordar com ‘céu e terra’, com ‘astro e flor’ e com ‘espaço e solidão’ – o que resultaria em ‘passarão’, ‘sejam propícios’ e ‘habitam-me’. A condição para que essa concordância seja aceita é que o verbo ocorra antes do sujeito, dizem eles.

Mas a observação desses casos juntamente com outros permite elaborar uma hipótese mais geral e, assim, compreender melhor um fenômeno cada vez mais frequente. Coloquemos os exemplos acima ao lado de outros e observemos com algum cuidado o que ocorre:

    Passará o céu e a terra…Que te seja propício o astro e a flor…Habita-me o espaço e a solidão…Embora ainda falte duas semanas para o GP Brasil… (Joyce Pascovich, Folha de S. Paulo, 21/3/1992)Faltou na vida de Althusser algumas noites que o inspirassem… (Fernando Gabeira, Folha de S. Paulo, 1/4/1992)O receio é que possa ocorrer problemas administrativos… (Folha de S. Paulo, 21/9/1992)Não é possível ser oferecido quase cem vagas a menos do que as existentes… (Correio Popular, 3/7/2002)Já no primeiro semestre de 2003, deverá ter início as eliminatórias… (Folha de S. Paulo, 5/7/2002)Já vou estar com 34 anos e a cada dia surge bons jogadores… (Declaração de Rivaldo, O Estado de S. Paulo, 6/7/2002)

Nos três exemplos extraídos de gramáticas – os primeiros da lista –, o sujeito é composto e está posposto e o verbo, no singular. Nos exemplos retirados de jornais, sejam eles de autoria de jornalistas conhecidos ou de outros cidadãos, o sujeito também está posposto e é plural, embora não seja composto. O que há de comum em todos os casos é o sujeito posposto, plural e o verbo no singular.

Talvez se possa propor uma regra parcialmente diferente da das gramáticas: o verbo não concorda com o primeiro nome do sujeito composto posposto; ele simplesmente não concorda com nada, já que a posição típica de sujeito – antes do verbo – está vazia. Ou seja, o verbo se comporta como se essas orações não tivessem sujeito.

Assim, a regra poderia ser simplesmente: Quando não há sujeito, o verbo vai para a terceira pessoa do singular.

Esta hipótese torna-se ainda mais interessante se considerarmos os casos em que, de fato, os verbos não têm sujeito, o dos verbos impessoais:

    Chove muito no verão.Neva no inverno.Venta nas noites de tempestade.Há muitas pessoas na praça.Faz dez anos que saiu.

O que a hipótese propõe é que se expliquem pela mesma regra os casos em que de fato não há sujeito e aqueles em que parece que não há sujeito, ou seja, quando o sujeito não está em sua posição típica.

Tal hipótese fica ainda mais forte se aceitamos que a concordância é um fenômeno sintático. É só do ponto de vista semântico, ou seja, interpretando a oração, que podemos dizer que a palavra posposta (‘céu’, ‘semanas’, ‘noites’…) é o sujeito, embora deslocado.

Acrescente-se que a concordância também não ocorre nos adjetivos ou nos particípios, exatamente como nos verbos (seja propício o astro e a flor, ser oferecido quase cem vagas, em vez de sejam propícios o astro e a flor, serem oferecidas quase cem vagas).

A hipótese é que o falante aplica a regra (isto é, copia traços de número e pessoa do sujeito no verbo) apenas se o sujeito estiver antes do verbo.

Diversidade e subjetividade

É mais fácil aceitar esta hipótese se aceitamos que em cada língua há várias gramáticas competindo entre si. Além da ordem das palavras, outros fatores intervêm para explicar a diversidade das soluções. Por exemplo, há casos em que se leva em conta, além da posição, a distância entre verbo e sujeito. Vejamos a seguinte afirmação de Evanildo Bechara:

“Se houver, entretanto, distância suficiente entre o sujeito e o verbo e se quiser acentuar a ideia de plural do coletivo, não repugnam à sensibilidade do escritor exemplo[s] como o[s] seguinte[s]: Começou então o povo a alborotar-se, e pegando do desgraçado cético o arrastaram até o meio do rossio e aí o assassinaram, e queimaram, com incrível presteza (Alexandre Herculano)”. (Moderna gramática portuguesa, 1999). Que fique claro que os verbos em negrito concordam com ‘o povo’ (e, de forma ‘canônica’, também o verbo ‘começou’).

Um analista dos fatos poderia dizer que supor que o autor quis acentuar uma ideia e que existe ou não repugnância a alguma construção são critérios subjetivos

Observe-se que, analisando apenas os fatos sintáticos, não há como saber se o autor deseja acentuar a ideia de plural. O que é patente é a presença de um termo coletivo com o qual o verbo concorda no singular quando está próximo e no plural quando está distante.

Note-se ainda que o gramático invoca, a rigor, um critério de gosto (não repugnam ao escritor). Um analista dos fatos poderia dizer que supor que o autor quis acentuar uma ideia e que existe ou não repugnância a alguma construção são critérios subjetivos. Objetivamente, tem-se um verbo no plural apesar de o sujeito estar no singular – embora o sujeito seja um coletivo e esteja distante do verbo.

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas