Um desafio e tanto

Estudantes do ensino médio em colégios de bom nível estão habilitados a montar circuitos elétricos simples. Basta conectar resistores (R), capacitores (C), bobinas indutoras (L), amperímetros, voltímetros, interruptores e fontes de tensão (pilhas, baterias ou rede elétrica) em uma placa especialmente desenhada e seguir o diagrama apropriado para a execução de tarefas específicas.

Por exemplo, para construir um oscilador que em determinado tempo forneça corrente elétrica em um sentido e no tempo seguinte inverta o sentido, basta ligar uma fonte de tensão em série com um resistor, um capacitor e uma bobina indutora. Amperímetros e voltímetros registrarão os valores da corrente e da voltagem, respectivamente. Conhecendo os valores desses componentes e a voltagem aplicada, é possível calcular os valores de saída desse circuito RLC, bem como o tempo em que a corrente circula em determinado sentido. Todo esse trabalho não leva mais que meia hora.

Fazer algo similar com DNA, cromossomos, genes, proteínas, bactérias, enzimas e outras moléculas é o que se pretende com a biologia sintética. Mas transformar a metáfora do circuito elétrico em realidade científica é um desafio e tanto. O primeiro oscilador construído com material genético exigiu mais de um ano de trabalho de dois dos mais renomados biofísicos do mundo, Michael Elowitz e Stanislas Leibler, ambos da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.

Uma das razões para tanto tempo era a inexistência de componentes biológicos prontos para a montagem do circuito. Só recentemente começaram a aparecer companhias interessadas em produzir componentes padronizados para uso em circuitos genéticos e outros experimentos biológicos.

A premissa é de um mundo no qual cientistas e engenheiros trabalhem juntos, usando material biológico padronizado, livremente disponível, seguro, ético e adequado à solução de problemas enfrentados pela humanidade

Nesse sentido, cabe destacar a Fundação Biobricks, criada em 2006 nos Estados Unidos e cuja missão é assegurar que a engenheirização da biologia seja conduzida de modo aberto e ético para benefício de todo o planeta. A premissa é de um mundo no qual cientistas e engenheiros trabalhem juntos, usando material biológico padronizado, livremente disponível e que seja seguro, ético e adequado à solução de problemas enfrentados pela humanidade.

A referência à Fundação Biobricks remete-nos à definição, ao escopo e aos desafios da biologia sintética, temas ainda alvo de intenso debate entre pesquisadores da área. O termo surgiu na literatura científica em 1980, mas o número de citações dos trabalhos publicados só ultrapassou a primeira centena em 2005; a partir daí, cresceu exponencialmente, chegando a superar as 10 mil citações em 2013. Apesar desse notável crescimento e de suas potenciais aplicações na biotecnologia e na medicina, uma definição precisa e consensual do que seja biologia sintética continua em aberto.

Para alguns, é sinônimo de engenheirização da biologia, ou biotecnologia. Para outros, é mais que isso quando vai em busca de ideias fundamentais, como padronização e abstração de componentes biológicos. Abstração de componentes biológicos é um procedimento análogo ao que é feito, por exemplo, na eletrônica, em que se discute o papel de um transistor em um circuito, sem a necessidade de saber como esse dispositivo é fabricado ou como ele é constituído internamente.

Há também os que se referem à biologia sintética como tecnologia para redesenhar a vida. Enfim, circula uma anedota segundo a qual se você perguntar a cinco pesquisadores o que é biologia sintética, provavelmente ouvirá seis respostas diferentes, porque alguém ficará indeciso entre duas.

Metáfora do circuito elétrico

Sendo inúmeros os experimentos científicos relatados na literatura que satisfazem às definições acima, ficamos impossibilitados, no espaço desta coluna, de apresentá-los na totalidade. Poderíamos fazer referências superficiais a alguns dos mais importantes, mas consideramos mais instrutivo apresentar com algum detalhe o trabalho seminal de Elowitz e Leibler, já mencionado, que obedece com rigor à metáfora do circuito elétrico.

Eles construíram um oscilador com elementos reguladores de transcrição, em um plasmídeo da bactéria Escherichia coli. Portanto, o circuito foi montado em uma estrutura circular. Os elementos básicos do circuito são três proteínas repressoras (reguladoras de transcrição), cada uma inibindo a ação de uma vizinha e sendo inibida pela outra vizinha. Por isso, o circuito foi denominado repressilador (do inglês, repressilator), uma mistura de repressor e oscilador.

Diversos fatores são responsáveis pela oscilação na produção das proteínas e de suas transcrições genéticas, entre os quais se destacam o efeito da concentração do repressor na taxa de transcrição, a taxa de produção de proteínas e a taxa de decaimento dos mensageiros de RNA. O monitoramento do processo foi realizado por meio de um sensor denominado plasmídeo repórter, no qual o circuito periodicamente produz a proteína verde fluorescente. Portanto, a oscilação do circuito manifesta-se na oscilação da fluorescência.

Oligodendrócito
Célula do sistema nervoso central (oligodendrócito) marcada com uma proteína fluorescente verde. (imagem: Jurjen Broeke)

Curiosamente, a oscilação do circuito é mais lenta que o ciclo de divisão das células envolvidas. Ou seja, o estado de oscilação deve ser transmitido de geração para geração. Embora os autores não tenham mencionado, esse fato lembra a teoria de Lamarck, e não vou me surpreender se forem publicados estudos científicos para averiguar essa correspondência.

Além de mostrar que é possível construir uma rede genética artificial com elementos naturais existentes em outros contextos, o estudo de Elowitz e Leibler pode contribuir para uma melhor compreensão de fenômenos periódicos naturais, como o ciclo circadiano, que regula o ciclo biológico de quase todos os seres vivos.

Apesar dos resultados abaixo das expectativas, a área está em franco progresso, com cerca de 500 novos trabalhos nos últimos anos

Quinze anos após a realização desse trabalho, a biologia sintética continua em um estágio inferior às expectativas iniciais, em face das dificuldades técnicas e de entendimento dos mecanismos fundamentais. Continua muito difícil a síntese de circuitos genéticos e sua transferência para os ambientes celulares, especialmente em animais. No lado fundamental, continua insatisfatório o conhecimento de como devem funcionar os circuitos nas células e tecidos.

Apesar desses resultados abaixo das expectativas na opinião dos mais exigentes, a área está em franco progresso, tendo sido publicados nos últimos anos cerca de 500 novos trabalhos.

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana