Feras brasileiras

A pesquisa sobre dinossauros no mundo tem se expandido bastante nesses últimos anos e o mesmo ocorre no nosso país. A exposição ‘O Brasil no Tempo dos Dinossauros’, realizada no início de 1999 no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi um marco nesse sentido, ao colocar em evidência no país esses animais pré-históricos. Depois dessa mostra, paleontólogos de diversas instituições começaram a descrever mais dinossauros e o número de novas espécies brasileiras mais do que quintuplicou: passou de quatro para 21 consideradas válidas.

Desde o início de 1999, o número de novas espécies brasileiras mais do que quintuplicou: passou de quatro para 21 consideradas válidas

Durante a minha carreira, já me perguntaram diversas vezes quantos dinossauros existem no Brasil. Mas nunca ouvi tanto essa pergunta como neste ano. Os próprios leitores da coluna já fizeram essa indagação mais de uma dezena de vezes.

Confesso que não tenho a menor ideia do motivo desse interesse nos nossos dinossauros. Já pensei até que todos (menos eu!) soubessem de algum lançamento da série Jurassic Park. Aliás, seria legal se um novo filme dessa fantástica série de Steven Spielberg estivesse em produção… Bem, promessas de um quarto episódio aparecem de vez em quando na internet, mas não existe nada de concreto – pelo menos, não que eu saiba.

Voltando aos nossos dinos, na maioria das vezes quem pergunta são alunos – ou pais de alunos – que estão desenvolvendo algum tipo de trabalho na escola. Mas também muitos profissionais da mídia têm se interessado no assunto. Por isso, resolvi abordar esse tema nesta coluna.

Número controverso

O número exato de dinossauros brasileiros pode variar, dependendo de quem for consultado. Sei que, à primeira vista, pode parecer meio confuso para o leitor, mas eu já explico. E nada melhor do que um bom exemplo para isso.

O primeiro dinossauro a ser descrito no Brasil foi o Staurikosaurus pricei. Essa espécie foi proposta a partir de um único exemplar coletado nas rochas avermelhadas que recebem o nome de Formação Santa Maria e que afloram em uma localidade próxima à cidade homônima, no interior do Rio Grande do Sul. Essas camadas são datadas de cerca de 225 milhões de anos atrás, época em que os dinossauros acabavam de surgir e estavam começando a se diversificar para ocupar diferentes regiões do nosso planeta.

Fósseis de Staurikosaurus pricei
O ‘Staurikosaurus pricei’ foi descrito em 1970 a partir de um único esqueleto coletado no Rio Grande do Sul, em rochas de cerca de 225 milhões de anos. (foto cedida pelo autor)

O único esqueleto dessa espécie recuperado até agora foi descrito pelo famoso paleontólogo norte-americano Edwin Colbert (1905-2001) em 1970 e sempre gerou controvérsias. Havia pesquisadores, como o próprio Colbert, que consideravam essa espécie herbívora e pertencente ao grupo dos ‘prossaurópodes’.

Mas estudos posteriores sugeriram que se tratava de uma forma carnívora, do grupo dos terópodes. Com base no exemplar encontrado, concluiu-se que o Staurikosaurus pricei tinha pouco mais de 2 m de comprimento total, caminhava sobre duas patas e se alimentava provavelmente de pequenas presas.

Existem ainda paleontólogos que defendem que o Staurikosaurus pricei não seria exatamente um dinossauro, mas sim um pré-dinossauro, ou seja, um réptil que, se pudesse, diria algo do tipo: eu quero ser um dinossauro quando evoluir!

Características típicas

Como se resolve um impasse como esse? A resposta está na própria maneira como se fazem as classificações atualmente: é preciso procurar no animal estudado características únicas e exclusivas (também denominadas sinapomorfias) de um determinado grupo, o que indicaria um parentesco próximo.

No caso dos dinossauros, existe um orifício na bacia (pélvis) onde a perna se encaixa. Essa região de encaixe, que se chama acetábulo, é perfurada nos dinossauros, tornando-se uma característica única desse grupo. Ela está presente no nosso Staurikosaurus, o que leva a maioria dos pesquisadores a classificar a espécie dentro desse grupo de répteis.

Nem todas as características típicas dos dinossauros podem ser comprovadas nessa espécie brasileira, o que gera dúvidas nos pesquisadores

Além do acetábulo perfurado, há mais uma dezena de sinapomorfias que unem o grupo dos dinossauros, a maioria delas presente nas pernas e nos pés. Nesse ponto, existe um grande problema para classificar o nosso Staurikosaurus: não se conhecem os pés desse animal!

Portanto, nem todas as características típicas dos dinossauros podem ser comprovadas nessa espécie brasileira, o que gera dúvidas nos pesquisadores. De qualquer forma, pelo que se sabe hoje em dia, a maioria dos paleontólogos está confortável com a proposta de o Staurikosaurus pricei ser um dinossauro primitivo – e não um pré-dinossauro.

Vários restos de outros dinossauros primitivos foram encontrados nos sedimentos de 225 milhões de anos da Formação Santa Maria, assim como em depósitos um pouco mais novos (de aproximadamente 215 milhões de anos) da Formação Caturrita, também no Rio Grande do Sul.

Até o momento, são mais três espécies. O Pampadromaeus barberenai, descrito em 2011, e o Unaysaurus tolentinoi, descrito em 2004, já foram apresentados anteriormente nesta coluna. Além destes, tem o Saturnalia tupiniquim, um dos raros casos em que são conhecidos não apenas um, mas três esqueletos.

Saturnalia tupiniquim
‘Saturnalia tupiniquim’, um dos quatro dinossauros primitivos encontrados no Brasil, foi descrito em 1999 a partir de três esqueletos, fato raro na paleontologia. (imagem: Max Langer/ USP Ribeirão Preto)

Esse dinossauro, descrito em 1999 por uma equipe coordenada por Max Langer (Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, SP), tinha um crânio pequeno em relação ao seu corpo e alcançava em torno de 1,5 m de comprimento. Acredita-se que sua dieta era variada, incluindo tanto pequenas presas como plantas.

Ossos de uma perna só!

Outro exemplo de controvérsia na classificação desses répteis pré-históricos é o suposto dinossauro descrito em 2006 pelos colegas Jorge Ferigolo (Fundação Zoobotânica, Rio Grande do Sul) e Max Langer (USP-Ribeirão Preto).

Em escavações coordenadas por Ferigolo na região do entorno da cidade de Agudo (RS), foram encontrados vários ossos de répteis, incluindo 15 fêmures (osso que forma a parte superior da perna) do lado direito e nenhum do lado esquerdo! O material foi coletado em rochas associadas ao Triássico Superior (cerca de 215 milhões de anos atrás).

A descoberta inusitada levou os pesquisadores a denominarem esse novo réptil de Sacisaurus agudoensis, em alusão ao famoso Saci, figura de uma perna só típica do folclore brasileiro. Os cientistas acreditavam que se tratava de um dinossauro herbívoro, com cerca de 1,5 m de comprimento, pertencente a um grupo que não havia sido encontrado anteriormente no país: o Ornithischia.

Sacisaurus agudoensis
O ‘Sacisaurus agudoensis’, cujos fósseis foram encontrados em rochas de cerca de 215 milhões de anos, é classificado como um pré-dinossauro. (imagem: Max Langer/ USP Ribeirão Preto)

No entanto, novos estudos defendem que o Sacisaurus agudoensis seria, na realidade, um daqueles pré-dinossauros. Ou seja, a rigor, essa espécie não é, hoje em dia, considerada um dinossauro, mas um parente bem próximo.

Resumindo: foram descritos ao todo no Brasil até a presente data 21 espécies de dinossauros e um pré-dinossauro. Também existem duas espécies que hoje não são mais consideradas válidas, pois os exemplares em que são baseadas estão bastante incompletos e não exibem características diagnósticas que permitam sua individualização. Abordei aqui apenas algumas dessas espécies, mas em colunas futuras vou escrever sobre as demais.

Enfim, essa é a situação atual dos dinossauros encontrados no Brasil. Pelo menos por enquanto…

Os dinossauros do Brasil

– Dinosauriformes (‘pré-dinossauros’):
Sacisaurus agudoensis
  
– Dinossauros primitivos:
Staurikosaurus pricei
Saturnalia tupiniquim
Pampadromaeus barberenai
Unaysaurus tolentinoi

– Dinossauros saurópodes (herbívoros):
Amazonsaurus maranhensis
Adamantisaurus mezzalirai
Baurutitan britoi
Uberabatitan ribeiroi
Tapuiasaurus macedoi
Gondwanatitan faustoi
Trigonosaurus pricei
Aeolosaurus maximus
Maxakalisaurus topai

– Dinossauros terópodes (carnívoros):
Pycnonemosaurus nevesi
Irritator challengeri
Angaturama limai
Oxalaia quilombensis
Santanaraptor placidus
Guaibasaurus candelariensis
Mirischia asymmetrica

– Dinossauro indeterminado
Teyuwasu barberenai

– Espécies questionáveis (não-válidas)
Spondylosoma absconditum
Antarctosaurus brasiliensis

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
(clique nos links sublinhados para mais detalhes)

Acaba de ser publicado pela Superintendência do Iphan de Alagoas o livro Patrimônio arqueológico e paleontológico de Alagoas. Organizada por Luana Teixeira, Henrique A. Pozzi e Jorge L. L. da Silva, a obra apresenta os principais registros arqueológicos do estado, com destaque para as pinturas rupestres, além de ilustrar alguns dos principais fósseis da megafauna encontrados em Alagoas. O livro tem como proposta conjugar divulgação com relevante informação científica, atendendo a todos os públicos.

Matt Stimson (Saint Mary’s University, Halifax, Nova Scotia, Canadá) e colegas acabam de descrever as menores pegadas de um tetrápode conhecidas até agora. Atribuídos a uma forma juvenil de anfíbio primitivo cujo tamanho é estimado em apenas 8 mm(!), os rastros se estendem por 48 mm em rochas formadas durante o Carbonífero (cerca de 320 milhões de anos atrás) na Formação Joggins, na localidade de mesmo nome. O trabalho foi destaque na Ichnos.

Sob coordenação de Matías Soto (Facultad de Ciencias, Montivideo, Uruguai), pesquisadores de diversos países – incluindo a colega Marise S.S. de Carvalho (UFRJ) – acabam de descrever restos de um celacantídeo atribuídos ao gênero Mawsonia. Apesar de fragmentário, o material, procedente da Formação Tacurembó (Jurássico-Cretáceo), localizada no Uruguai, é o registro mais ao sul do gênero, o que amplia a área de ocorrência desse grupo de peixes primitivos. O trabalho foi publicado no Journal of Vertebrate Paleontology.

O último número da Revista Brasileira de Paleontologia apresentou um artigo de revisão sobre os icnofósseis (rastros de invertebrados) estudados pelo pesquisador alemão Wilhelm Kegel (1870-1971). O material é procedente da bacia do Parnaíba, extensa área sedimentar situada na região Nordeste do Brasil. Os estudos realizados por Kegel são considerados pioneiros na região e não tinham sido revistos até agora. A pesquisa foi coordenada por Antonio C.S. Fernandes (Museu Nacional/UFRJ).

Sergio F. Vizcaíno (Museo de La Plata, Argentina) e colegas publicaram pela Cambridge University Press o livro Early Miocene Paleobiology in Patagonia. Como tema central do livro, os pesquisadores se dedicaram a revisar os fósseis encontrados na Formação Santa Cruz, onde restos de mamíferos e aves, entre outros, têm sido encontrados por quase um século. Mais informações no site da editora.

Christopher A. McRoberts (State University of New York at Cortland, Cortland, Estados Unidos) e colegas fizeram uma análise do efeito da extinção ocorrida no final do Triássico na bacia de Kössen, na Áustria. Por meio do estudo da variação do registro de bivalves, os autores puderam confirmar que a melhor explicação para a extinção naquela região seria a acidificação da água do mar devido a erupções vulcânicas. O estudo foi publicado na Palaios.