Um edifício milenar

Foice de barro usada por um agricultor que viveu há 5 mil anos na região em que fica o atual Iraque, em exposição no Museu Field, em Chicago / EUA (foto: Wikimedia Commons).

Uma das características que nos distingue da maior parte das demais espécies é, sem dúvida, a nossa capacidade de aprender. Desde a época das cavernas começamos a procurar padrões, ciclos e fenômenos que pudéssemos entender para melhorar nossas chances de sobrevier neste planeta. Um exemplo disso é a compreensão dos fenômenos do dia e da noite, da alternância das estações do ano, do movimento anual do céu etc. Isso permitiu que, por volta de 12 mil anos atrás, o homem deixasse de ser apenas um coletor da natureza para se tornar também um produtor do seu próprio alimento.

A agricultura, que começou nas regiões férteis banhadas por grandes rios como Tigres, Eufrates e Nilo, foi talvez uma das mais importantes invenções da humanidade. Essa técnica não só garantiu à espécie humana uma sobrevivência mais fácil, como também lhe concedeu mais tempo livre para pensar em outras coisas. Com essa disponibilidade, os humanos puderam se dedicar a novas interpretações da natureza. Dentre as várias formas de olhar mundo surgidas desde então, a física é um dos mais bem sucedidos empreendimentos.

A construção dessa edificação milenar começou com a preparação do terreno em uma época que os medos e mitos ainda dominavam a forma de pensar do homem. Os grandes filósofos da época helênica, como Tales de Mileto, Anaximandro, Heráclito e Aristóteles, entre outros, foram os primeiros a tentar aplainar o terreno, entre os séculos 4 e 6 a.C.

Esses pensadores introduziram conceitos que procuravam mostrar que o nosso mundo, e tudo o que existia nele, era feito por elementos fundamentais como terra, água, fogo e ar. O céu, que parecia para eles muito distante, era feito de um elemento especial, o éter. A partir da combinação desses elementos, era possível explicar muitas coisas. Esses esforços, mesmo deixando alguns buracos no terreno, permitiram vislumbrar que era possível realizar a grande obra que ainda estava por vir.

Os alicerces do Renascimento

Réplica de telescópio atribuído a Galileu Galilei em exposição no Observatório Griffith, em Los Angeles / EUA (foto: Michael Dunn).

Entretanto, o estabelecimento dessa construção de maneira mais sólida levaria ainda quase 2 mil anos. O belo edifício da física começou a ter seus alicerces construídos na época do Renascimento, quando a humanidade se libertava das amarras de pensamento impostas por dogmas e preceitos religiosos. O polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) corajosamente colocou os primeiros tijolos, ao estabelecer que a Terra não era o centro do universo, mas sim apenas um planeta como outro qualquer.

O italiano Galileu Galilei (1564-1642), como um hábil “construtor”, organizou conceitos e idéias, testando-as das mais diversas formas, de forma a permitir a compreensão dos movimentos dos corpos terrestres de uma maneira inédita. Ele mostrou que o movimento pode ser eterno, desde que não haja interferência.

Além disso, ele conseguiu olhar mais longe do que qualquer um jamais fizera: com a pequena luneta construída por ele, desvendou que o céu não era perfeito, mas povoado por mundos semelhantes ao nosso. Suas observações mostraram que havia montanhas na Lua e manchas no Sol, e que pequenos corpos (satélites) giravam ao redor de Júpiter. Galileu revelou ainda que havia muito mais estrelas do que os nossos olhos conseguiam enxergar.

Na mesma época de Galileu, um “arquiteto” obstinado por formas geométricas perfeitas, o alemão Johannes Kepler (1571-1630), decifrou os segredos da harmonia celeste. Pela primeira vez, alguém havia construído um modelo matemático para descrever os movimentos planetários, que ainda hoje é válido para qualquer lugar do universo. O que parecia divino podia ser compreendido pelo humano.

Conclusão do primeiro pavimento
Entretanto, o primeiro pavimento do edifício da física somente ficaria completo graças à habilidade do inglês Isaac Newton (1643-1727), que não só conseguiu completar o trabalho de seus antecessores, mas também desenvolveu as ferramentas necessárias para que muitas gerações posteriores continuassem lapidando esse conhecimento.

Exemplar de Isaac Newton de sua obra mais importante, exposta na Biblioteca Wren (Cambridge / Reino Unido). Essa obra, em que ele formula suas principais teorias físicas, pode ser considerada o “projeto arquitetônico” do primeiro pavimento do edifício da física, que Newton ajudou a consolidar (foto: Andrew Dunn).

Com as leis da mecânica, a lei da gravitação universal, o cálculo diferencial e integral, seus estudos sobre óptica e outras contribuições, ele conseguiu, pela primeira vez na história da humanidade, uma construção teórica de alcance universal. Newton unificou a compreensão dos movimentos terrestres e celestiais. Tão sólido é esse conhecimento que, passados mais de 300 anos, ele continua indispensável a todos nós.

 

Uma vez consolidado, esse primeiro pavimento começou com o passar do tempo a ficar pequeno para abrigar a grande quantidade de novos fenômenos e conceitos que foram descobertos. No século 19, outros hábeis construtores começam a ampliar o edifício da física.

 

As primeiras reformas começaram com as descobertas da relação entre os fenômenos elétricos e magnéticos feitas pelo francês André-Marie Ampère, pelo dinamarquês Hans Christian Oersted e pelo inglês Michael Faraday, entre outros. Coube ao escocês James Clerk Maxwell (1831-1879) dar a pintura final a esse novo cômodo. Ele consolidou a eletricidade e o magnetismo como uma única força da natureza (força eletromagnética) e mostrou que a luz era uma manifestação desse fenômeno. A pintura por ele realizada deu novas cores à física.

 

Ainda no final do século 19 e no começo do século 20, outros fenômenos físicos precisavam ser abrigados no edifício. Em particular, aqueles que envolviam as propriedades térmicas dos sistemas, que não se enquadravam perfeitamente nas concepções newtonianas. Percebeu-se que era impossível descrever algo tão simples como o ar utilizando as equações de Newton, simplesmente porque essa mistura de gases (ou qualquer outra) possui em condições normais uma quantidade enorme de partículas (da ordem do número de Avogadro – 10 23

, ou o número 10 seguido de 23 zeros).

 

Para tanto, foi preciso introduzir novos conceitos, como a conservação da energia e o aumento da entropia

, bem como a mecânica estatística, que descreve essas situações utilizando métodos estatísticos. Nesse caso, os principais articuladores foram o norte-americano Josiah Gibbs (1839-1903) e o austríaco Boltzmann (1844-1906).

 

Um edifício pronto?

 

No começo do século 20 existia a impressão de que a física era um edifício pronto. Nas palavras de Lorde Kelvin: “Não há nada de novo a ser descoberto na física agora. Tudo que resta são medidas mais e mais precisas”. Entretanto, novos fatos que surgiram tornaram essencial a construção de novos pavimentos. A teoria da relatividade proposta pelo alemão Albert Einstein (1879-1955) não só expandiu o edifício da física, mas também motivou uma reforma em seus alicerces, em particular nos conceitos de espaço e tempo. Einstein mostrou que ambos são uma única entidade e que dependem particularmente de cada observador. O espaço-tempo é único para cada indivíduo.

 

A imagem mostra uma representação hipotética do decaimento do bóson de Higgs no Grande Colisor de Hádrons. Esse bóson é uma das poucas partículas subatômicas previstas pela teoria que ainda não foram observadas. Sua descoberta pode levar a reformas na estrutura do edifício da física (arte: Cern).

Outro pavimento que foi necessário ser erguido é a mecânica quântica

, uma obra mais complexa, feita em conjunto por vários construtores ao longo do século 20, dentre os quais o próprio Einstein, o dinamarquês Niels Bohr, o alemão Werner Heisenberg, o austríaco Erwin Schröndiger e o inglês Paul Dirac, entre outros. Esse pavimento também exigiu reformas nas bases de muitos conceitos físicos, como a dualidade partícula x onda, a quantização da energia e da quantidade de movimento e o fato de as leis da natureza serem probabilísticas, e não deterministas. A mecânica quântica teve um impacto tão grande que grande parte da nossa tecnologia atual depende exatamente dela.

 

O grande edifício da física ainda não está pronto, no entanto. A mecânica quântica e a teoria da relatividade geral são dois pavimentos apoiados em alicerces diferentes, ou seja, não compartilham das mesmas bases teóricas. Ambas incorporaram a mecânica newtoniana a sua forma, mas não são adequadas para descrever completamente a natureza. A primeira descreve o mundo do muito pequeno (em escala atômica), incorporando, em princípio, três das forças fundamentais da natureza – a eletromagnética, a nuclear forte (que mantém o núcleo atômico coeso) e a nuclear fraca (associada com os processos da radioatividade). A segunda é a teoria da gravitação, importante em grandes escalas.

 

No momento, novos arquitetos e construtores tentam fazer a ponte entre esses dois pavimentos, na esperança de completar a tarefa iniciada séculos atrás. Muitos esforços do ponto de vista teórico (via teoria de supercordas) e experimental (via os experimentos em grandes aceleradores de partículas e a investigação de fenômenos que aconteceram no início do universo) estão sendo feitos. A conclusão dessa obra ainda parece distante. Talvez ainda no século 21 possamos ver o edifício completo. Porém, como toda obra sempre precisará de reformas, manutenções e ampliações, quem sabe ela ainda incorpore outros prédios erguidos pelo próprio homem e, dessa forma, chegue mais perto da verdadeira compreensão da natureza.

 


Adilson de Oliveira

Departamento de Física

Universidade Federal de São Carlos

21/03/2008