Um inimigo dentro de nós?

 

Walt Kelly (1913-1973) foi um dos grandes cartunistas americanos. Seus fascinantes personagens animais, liderados nas estórias por Pogo, um gambá, filosofavam e faziam críticas sociais e políticas sem medo nem pudor no pântano em que viviam. De lá brotaram reflexões geniais como: “este problema apresenta oportunidades intransponíveis”, “Deus não está morto, só está desempregado…” ou “não leve a vida tão a sério, meu filho, pois ela não é permanente”.

Mas certamente a tirinha mais famosa de Kelly foi publicada em 1970, para comemorar o primeiro “Dia da Terra”. Nela (ver figura abaixo) Porky Pine (um porco-espinho) inspecionando a enorme poluição do pântano, observa que “É muito difícil andar sobre esta tralha”, enquanto Pogo, exclama: “Sim, meu filho, nós encontramos o inimigo e ele é nós”.

(texto e arte: Walt Kelly).

Ao contemplarmos o nosso genoma, verificamos que, como já discutido em uma coluna anterior , 42% dele é composto de parasitas intragenômicos, seqüências de DNA derivadas de moléculas de RNA pelo mecanismo de transcrição reversa. Assim como o pântano de Pogo, o nosso genoma está poluído por tralha acumulada durante a nossa longa história evolucionária. Diferente, porém, é o fato de que o genoma ainda assim funciona muito bem, obrigado.

Os componentes mais bizarros desse zoológico genômico certamente são os retrovírus endógenos. O próprio nome deles já inspira medo, pois sempre associamos a idéia de vírus a doenças. Podemos nos perguntar então: esses elementos são perigosos? Estamos acolhendo um inimigo dentro de nós?

Retrovírus infecciosos e retroposição
O “dogma central da biologia molecular”, enunciado em 1958 pelo grande cientista inglês Francis Crick (1916-2004), estabelecia que a informação genética flui unidirecionalmente de DNA para RNA para proteínas. Como sói acontecer com dogmas, este não durou muito tempo. Em 1970 dois cientistas americanos, David Baltimore (que tinha apenas 32 anos na época) e Howard Temin (1934-), descobriram de forma independente uma enzima chamada transcriptase reversa, capaz de sintetizar DNA usando RNA como molde.

A transcriptase reversa é uma enzima que sintetiza DNA a partir de RNA. Além de ter um papel importantíssimo no ciclo de vida dos retrovírus e na manutenção das extremidades dos cromossomos (como telomerase), as transcriptases reversas são parte fundamental e indispensável da caixa de ferramentas da engenharia genética (arte: Wikimedia Commons).

De fato, esta é a enzima que permite que um grande grupo de vírus, chamados retrovírus, cujo genoma é feito de RNA, possa se copiar em DNA e se incorporar no genoma das células hospedeiras. A descoberta de Baltimore e Temin foi tão importante que eles receberam o Prêmio Nobel de Medicina meros cinco anos após, em 1975.

Inúmeros retrovírus são importantes causas de doença, especialmente tumores, em várias espécies de mamíferos. Curiosamente, isso não ocorre em humanos. Na nossa espécie apenas retrovírus mais complexos e sofisticados, chamados lentivírus, são capazes de afetar nossa saúde. Aliás, é um destes lentivírus, o HIV, que causa a Aids.

É a tendência da transcriptase reversa de cometer erros freqüentes no processo de copiar o RNA em DNA que é responsável pela elevadíssima taxa de mutação do HIV, permitindo a esse vírus evoluir com velocidade espantosa (como já discutimos anteriormente ) e escapar da vigilância do nosso sistema imunológico.

De volta ao genoma humano
Na década de 1990 foram descobertas, no genoma de aves e mamíferos, inúmeras seqüências de DNA que tinham grande similaridade com os retrovírus infecciosos e por isso foram denominadas retrovírus endógenos (RVEs). Sabemos hoje que esses estranhos elementos constituem 8% do genoma humano.

Como já vimos acima, uma das características mais fundamentais dos retrovírus é a capacidade de integrar-se no DNA da célula hospedeira na forma de pró-vírus, como parte de seu ciclo de replicação. Assim, acreditamos que os retrovírus endógenos sejam o resultado de infecções ancestrais de células germinativas por retrovírus infecciosos. Ao incorporar-se no DNA nuclear, esses retrovírus passaram a ser partes integrais do genoma da espécie e foram transmitidos estavelmente às gerações subseqüentes.

Esse processo de “endogenização” não ocorreu apenas no nosso passado evolucionário longínquo. Sabemos que algumas cópias desses RVEs são polimórficas (estão presentes em algumas pessoas e não em outras), indicando com certeza que foram integradas ao genoma humano após a emergência da humanidade moderna na África, há menos de 200 mil anos.

Um pequeno raciocínio evolucionário nos sugere que, se a presença dos RVEs fosse muito deletéria, eles jamais teriam se perpetuado no genoma, pois teriam sido eliminados pela seleção natural. Sabemos que a expressão genética dos retrovírus endógenos recém-incorporados ao genoma é reprimida por metilação, como já discutido em uma coluna anterior . Assim, eles tornam-se seletivamente neutros e podem fixar-se nas populações através de deriva genética. Com o tempo, os RVEs acumulam deleções e mutações que fazem com que praticamente todos eles sejam defeituosos. Existe expressão genética por parte de alguns retrovírus endógenos humanos, mas todos os que conhecemos são incapazes de se replicarem.

Anjos ou demônios?
Um dos maiores sucessos do grande compositor e cantor franco-armeniano Charles Aznavour (1924-) foi uma canção belíssima (embora talvez um pouco chauvinista) chamada “Tous les visages de l’amour” (“Todas as faces do amor” – a versão inglesa, intitulada “She” , ficou famosa como tema sonoro do filme Notting Hill , um sucesso de 1999 estrelado por Julia Roberts). Aznavour passa os 2 minutos e 28 segundos da canção discutindo se as mulheres são anjos ou demônios, sem conclusão definitiva. E os retrovírus endógenos, são anjos ou demônios? Teríamos um inimigo dentro de nós. Ou, citando um outro filme com Julia Roberts, será que estamos “dormindo com o inimigo”?

Pois bem, a seleção natural é um mecanismo fantasticamente oportunista, capaz de recrutar os elementos genômicos mais inusitados para a batalha evolucionária. Assim, não é nada surpreendente que alguns RVEs tenham adquirido uma função fisiológica. Estou especificamente falando de um família de retrovírus endógenos chamada HERV-W, que contém cerca de 100 cópias, todas elas defeituosas, com exceção de uma única, que codifica uma proteína intacta de envelope viral. Essa proteína é expressa em células da placenta humana e acredita-se hoje que ela esteja envolvida em uma das etapas fundamentais da formação da placenta a fusão de células necessária para formar uma estrutura com o nome “cabeludo” de sinciotrofoblasto. Fica então claro e evidente que alguns retrovírus endógenos podem ter uma face de anjo. E de demônio?

Na verdade, não temos provas claras de atividades nocivas dos retrovírus endógenos. Há relatos de possíveis participações na gênese de tumores e de algumas doenças auto-imunes humanas, como a síndrome de Sjögren. Especialmente tem se tentado implicar os RVEs na etiologia da esclerose múltipla e da esquizofrenia. No frigir dos ovos, a maior parte da evidência é indireta e circunstancial. Afinal, se todas as pessoas têm os mesmos RVEs, como podem eles serem a única causa das doenças? Novos estudos estão tentando relacionar os retrovírus endógenos geneticamente polimórficos com doenças, mas os dados ainda são muito preliminares para serem discutidos aqui.

Partículas do vírus HERV-K(HML2) reconstruído brotando da superfície de células humanas infectadas (Lee e Bieniasz, PLoS Pathogens 3: e10, 2007).

No último ano, pesquisas com uma outra família de retrovírus endógenos humanos, chamada HERV-K, têm trazido resultados tantalizantes. Essa família contém o grupo de RVEs mais jovens do nosso genoma, sendo alguns ainda polimórficos. Como todos os outros RVEs humanos, os membros da família HERV-K são incapazes de replicação.

Mas existem cenários possíveis nos quais um retrovírus endógeno pode readquirir competência replicativa e tornar-se novamente infeccioso – em suma, ressuscitar. O principal seria que as proteínas funcionais necessárias para a replicação fossem fornecidas por outros vírus endógenos ou infecciosos na mesma célula (um fenômeno tecnicamente chamado de complementação em trans).

Esse cenário teórico de reanimação foi recentemente explorado experimentalmente por dois grupos de pesquisa, um na França (clique aqui para ver o artigo) e outro nos Estados Unidos (clique aqui para ver o artigo – arquivo com 5 Mb). Ambos os grupos usaram protocolos muito similares e inferiram, a partir do estudo das seqüências de DNA de vários membros da subfamília HERV-K(HML2), a seqüência do vírus ancestral que penetrou no genoma de um antepassado nosso há alguns de milhões de anos. Eles então reconstruíram no laboratório esse genoma ancestral e o inseriram em células humanas. Algumas das células infectadas produziram novas partículas virais (ver figura) que provaram ser competentes para infectar outras células humanas. Os cientistas franceses, muito apropriadamente, chamaram o vírus ressuscitado de Fênix .

Genomas dentro de genomas 

Cromossomo politênico de Drosophila ananassae (corado em vermelho), contendo o genoma de Wolbachia em verde e indicado pela seta branca (Hotopp et al. Science , 317: 1753, 2007) .

Em uma coluna anterior discutimos o fato de que o corpo humano contém 100 trilhões de células, 90% das quais são bactérias que vivem simbioticamente em nossa pele e cavidades corporais. É a nossa “exofauna”. Sabemos que estas são em sua vasta maioria bactérias amigas, que contribuem para a nossa saúde.

Também, pelo exposto acima, agora sabemos que 8% do nosso genoma é constituído de remanescentes de retrovírus infecciosos que penetraram as gônadas de nossos antepassados evolucionários milhões de anos atrás. É a nossa “endofauna”. Esses retrovírus endógenos não parecem ser nossos inimigos explícitos. Na verdade, comportam-se de maneira neutra, nem como anjos e nem como demônios, vivendo comportadamente e sob controle em nossos genomas.

Seria possível, em analogia aos retrovírus endógenos, ter um genoma bacteriano dentro de um outro genoma? De cara, tranqüilizo o leitor de que com certeza isso não ocorre com a espécie humana. Mas duas semanas atrás, no número de 21 de setembro da Science, cientistas do Instituto J. Craig Venter, nos Estados Unidos (baixar artigo aqui ), relataram que o genoma da mosca Drosophila ananassae possui um genoma completo da bactéria Wolbachia , que é um endossimbionte de várias espécies de invertebrados (ver figura).

Além do seu interesse intrínseco para a biologia das espécies envolvidas, a presença dos retrovírus endógenos em mamíferos (incluindo humanos) e de genomas como o da Wolbachia em insetos indica um elevado nível de promiscuidade evolucionária. A transferência horizontal de genes e a transmissão estável deles a gerações subseqüentes parecem ser muito mais comuns do que anteriormente imaginado.

Como este é um tipo de herança de caracteres adquiridos, deve constituir mais uma vindicação para o nosso injustiçado evolucionista francês do século 18, Jean-Baptiste de Lamarck !


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
12/10/2007