Um mistério cheio de dentes

Há alguns dias, durante uma aula sobre tecido cartilaginoso, um aluno fez uma pergunta intrigante: se a regeneração da cartilagem é um processo difícil e demorado, como se dá o reparo de fraturas nos peixes cartilaginosos, que possuem esqueletos formados integralmente por esse tecido?

A pergunta é bastante interessante, pois os peixes cartilaginosos ou condrictes (do grego chondros, cartilagem, e ichthyos, peixe) estão presentes em nosso planeta há cerca de 370 milhões de anos e alcançaram grande sucesso evolutivo. Os paleontólogos acreditam que esse grupo zoológico – repesentado atualmente pelos tubarões, pelas raias e pelas menos conhecidas quimeras –  tenha se derivado dos placodermas, animais que já se assemelhavam aos tubarões e que viveram entre 395 e 354 milhões de anos atrás.

Para termos uma ideia dessa longa história evolutiva dos condrictes, basta lembrar que estimativas indicam que os humanos modernos surgiram na África há cerca de 200 mil anos – uma fração de segundos diante do tempo em que os condrictes estão presentes por aqui. Como esse grupo taxonômico que possui diversas espécies de predadores vorazes e que, por isso, estão sujeitas a sofrer ferimentos e fraturas, pode ter dificuldades na regeneração de suas estruturas esqueléticas?

O tecido cartilaginoso tem ao mesmo tempo resistência e maleabilidade

O esqueleto cartilaginoso dos condrictes é sintetizado por células denominadas condrócitos e se caracteriza por possuir fibras colágenas abundantes e uma matriz extracelular na qual estão presentes as chamadas conderomucinas. Essas glicoproteínas proporcionam, ao mesmo tempo, resistência e maleabilidade anatômicas. Nos condrictes não há formação de tecido ósseo, embora a cartilagem possa sofrer ocasionalmente calcificação.

A ausência de tecido ósseo impõe alguns desafios para esses peixes. Por não possuírem costelas, eles podem ter seus órgãos internos esmagados por seu próprio peso. Além disso, os condrictes não apresentam medula óssea, fazendo com que as suas hemácias sejam produzidas no fígado, no baço ou em uma região próxima das gônadas conhecida como órgão de Leydig.

 

Cartilagem e tecido ósseo

Existem três tipos de cartilagem: hialina, elástica e fibrosa (ou fibrocartilagem). Destas, a cartilagem hialina é a de ocorrência mais frequente nos seres vivos e forma a maior parte do esqueleto embrionário. Posteriormente, esse tecido é em sua maior parte substituído por tecido ósseo.

Cartilagem hialina
A cartilagem hialina é a mais frequente nos seres vivos. Nos adultos, ela está presente nas fossas nasais, na traqueia e nos brônquios, entre outras estruturas (foto: Dept. of Histology, Jagiellonian University Medical College – CC BY-SA 3.0).

Nos adultos, a cartilagem hialina está presente nas fossas nasais, na traqueia e nos brônquios, na extremidade ventral das costelas e dos ossos longos, em uma região conhecida como disco epifisário. No disco epifisário, a cartilagem hialina é substituída por tecido ósseo – em um processo conhecido como ossificação endocondral –, permitindo o crescimento longitudinal dessas estruturas e, consequentemente, o aumento de estatura dos indivíduos.

A cartilagem, por sua vez, cresce por meio da proliferação do tecido conjuntivo que a envolve (pericôndrio), em um processo conhecido como crescimento aposicional, ou por meio da proliferação dos condrócitos presentes no interior da matriz cartilaginosa (crescimento intersticial).

A cartilagem tem estrutura simples se comparada com outros tecidos

A cartilagem apresenta uma estrutura simples quando comparada com outros tecidos. O tecido cartilaginoso possui basicamente condrócitos imersos em uma matriz sintetizada por esse tipo celular. Essa matriz é altamente hidratada e composta por colágeno e por substância fundamental amorfa (glicoproteínas, proteoglicanas e glicoproteínas adesivas).

Como nesse tecido não há vasos ou nervos, a nutrição e a excreção ocorrem por difusão através da matriz cartilaginosa a partir do tecido conjuntivo. Por esse motivo, a atividade metabólica da cartilagem é reduzida, influenciando inclusive a reparação de lesões nesse tecido. Isso é algo que não ocorre, por exemplo, com os ossos, um tecido caracterizado por uma remodelação contínua e uma elevada taxa metabólica.

Essa capacidade restrita de regeneração tem implicações médicas importantes. Ela dificulta, por exemplo, o tratamento de lesões articulares causadas pela osteoartrite  ou artrose, uma patologia que afeta em um grande número de idosos, mas que também pode ocorrer em pessoas mais novas.

A taxa de remodelação da cartilagem depende da produção pelos condrócitos de enzimas que digerem a matriz cartilaginosa e da secreção de novas moléculas por esses tipos celulares. Não existem nesse tecido células especializadas na degradação da matriz, como, por exemplo, os osteoclastos presentes nos ossos e que degradam esse tecido e mesmo a cartilagem próxima.

 

Regeneração das cartilagens

A ausência de um tipo celular que exerça esse papel tem implicações para a regeneração das cartilagens como pode ser observado a partir de diversos experimentos realizados para avaliar a recuperação de danos nas cartilagens.

Cartilagem lesionada
As setas mostram danos superficiais à cartilagem em uma lesão de articulação em um suíno. A recuperação da cartilagem em mamíferos e outros animais é um processo lento e ineficiente (foto: Rikke K Kirk Bente Jørgensen e Henrik E Jensenl – CC BY 2.0).

Estudos com anfíbios, aves, répteis e mamíferos indicam que a recuperação da cartilagem nesse seres também é um processo lento e, frequentemente, ineficiente. Nesses animais a cicatrização é eficiente em embriões e em fetos, que apresentam células que se multiplicam rapidamente e que estão envoltas por uma quantidade reduzida de matriz. Indivíduos adultos, por outro lado, apresentam uma redução na sua capacidade regenerativa. Nos indivíduos mais velhos, a cartilagem danificada é substituída por tecido ósseo ou por fibrocartilagem.

A recuperação da cartilagem é um processo lento e ineficiente

Apesar da cicatrização esquelética dos condrictes ainda estar envolta por muitos mistérios, algumas pesquisas, entretanto, têm desvendado as primeiras pistas desse processo.

Um experimento realizado por Doreen Ashhurst, pesquisadora do Hospital Saint George em Londres, por exemplo, procurou avaliar o processo regenerativo dos condrictes a partir da realização de lesões e do acompanhamento do reparo tecidual nas barbatanas de uma espécie de tubarão conhecida como peixe-cachorro (Scyliorhinus sp.).

Nesses peixes, as nadadeiras são formadas por cartilagem hialina envolta por pericôndrio e possuem em seu interior regiões de calcificação esparsas. Ashhurst observou inicialmente nas regiões lesionadas um processo inflamatório que perdurou por cerca de duas semanas. Durante esse período, o pericôndrio permaneceu inativo.

Posteriormente, a resposta inflamatória diminuiu e a região passou a ser ocupada por um tecido fibroso com pouca similaridade com a cartilagem hialina que existia no local, embora esse tecido possuísse células similares aos condrócitos. Não ocorreu penetração de vasos sanguíneos ou de nervos no local da lesão.

Como seria esperado, o período de recuperação desses animais é bem mais lento do que o observado em animais homeotérmicos. Por isso, os experimentos se estenderam por seis meses. Contudo, mesmo após esse longo período, não foi observada uma integração entre a cartilagem pré-existente e o tecido fibroso recém-formado.

Como a associação entre o tecido recém-produzido e o tecido lesionado é essencial para a restauração da funcionalidade do órgão danificado, é provável que a região ferida apresente algum comprometimento fisiológico ou morfológico. A inexistência de células qualificadas para a remodelação do tecido cartilaginoso lesionado pode explicar a não ocorrência desse processo.

Dasyatis americana
As raias (como a da espécie ‘Dasyatis americana’, retratada na foto) também pertencem ao grupo dos condrictes (foto: Dan Hershman – CC BY 2.0).

Evolução da cartilagem

Pode ser argumentado que, como os condrictes vivem no meio líquido, há uma menor probabilidade de fraturas esqueléticas, o que pode ter minimizado a importância da evolução de um mecanismo para o reparo dessas lesões. Por outro lado, os peixes ósseos que habitam o mesmo hábitat sofrem fraturas, ainda que raras. Essas lesões são reparadas por um processo similar ao observado em outros grupos, com a formação no local fraturado de um calo ósseo-cartilaginoso característico.

Portanto, segundo o que se sabe até o momento, a cartilagem parece ter surgido evolutivamente como uma alternativa para o processo de ossificação posterior ou como um tecido associado apenas com um papel estrutural e que tem uma impossibilidade fisiológica de desempenhar funções mais complexas, mesmo que sejam associadas apenas com a sua própria regeneração.

Apesar das dificuldades de cicatrização dos condrictes, que representam desvantagens evidentes para eles, eles tiveram grande sucesso evolutivo. Os mistérios por trás desse êxito devem ser estudados com grande urgência, antes que as únicas lembranças desses magníficos animais, tão ameaçados de extinção, sejam apenas mandíbulas cheias de dentes penduradas em paredes pelo mundo afora.

Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras

Sugestões para leitura:

Ashhurst, D.E. (2004). The cartilaginous skeleton of an elasmobranch fish does not heal. Matrix Biol. 23, 15-22.

Clouet, J. et al. (2009). From osteoarthritis treatments to future regenerative therapies for cartilage. Drug Discov. Today 14, 913-925.

Gobbi, A. e Bathan, L. (2009). Biological approaches for cartilage repair. J. Knee. Surg. 22, 36-44.

Schulze-Tanzil, G. (2009). Activation and dedifferentiation of chondrocytes: implications in cartilage injury and repair. Ann. Anat. 191, 325-338.

Tanaka, M. et al. (2002). Fin development in a cartilaginous fish and the origin of vertebrate limbs. Nature 416, 527-531.

Van Osch, G.J. et al. (2009). Cartilage repair: past and future–lessons for regenerative medicine. J. Cell Mol. Med. 13, 792-810.