Um romance da natureza

O português é uma das línguas mais belas e ricas que existem. Muitos escritores imortalizaram suas ideias e sentimentos em obras-primas da literatura mundial utilizando o nosso idioma. Do épico Os Lusíadas, de Luís de Camões (1524-1580), – que narra a jornada de Vasco da Gama às Índias –, passando pela exploração da alma humana feita por Machado de Assis (1839-1908) nos romances Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, entre outros, até a poesia e prosa de Fernando Pessoa (1888-1935) e os belos poemas de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) – apenas para citar alguns dos mais importantes escritores –, percebemos como palavras e versos organizados por mentes brilhantes nos levam a um novo mundo de conhecimento e a lugares nunca antes imaginados.

Para compreender e apreciar as obras literárias, não basta conhecer as palavras usadas para escrevê-las. É preciso ir além. Incorporar o espírito da narrativa e abrir a mente para viajar junto com o autor por caminhos que ainda não conhecemos. Da mesma forma, para conhecer e compreender o cosmos é necessário “ler” a natureza. Nesse sentido, muitos “romances” já foram escritos, com diferentes histórias e interpretações.

A física nos traz uma leitura do universo muito particular e, ao mesmo tempo, muito ampla. Trata-se de uma história que começou muito tempo atrás e já teve muitas reviravoltas. Diversos escritores escreveram seus capítulos, contando fatos antigos de novas maneiras. Outros iniciaram capítulos inéditos, que ainda não estão terminados e talvez nunca cheguem ao fim.

Capítulo inicial
Um dos capítulos mais antigos do romance da física trata do movimento. A trama começou há milhares de anos, quando os filósofos gregos refletiam sobre como ocorrem os movimentos. Um dos principais escritores desse capítulo foi Aristóteles (384 a.C-322 a.C). Ele defendia a ideia de que o movimento só poderia existir se houvesse uma força para mantê-lo. Para Aristóteles, os movimentos terrenos seriam diferentes dos celestes, pois os planetas e estrelas estariam em eterno movimento no céu.

Após quase dois mil anos, novos autores reescreveram essa história. O italiano Galileu Galilei (1564-1642) redigiu um dos trechos mais importantes desse capítulo, ao introduzir o conceito de inércia. Ele deduziu, a partir da observação de esferas rolando sobre planos inclinados, que todos os corpos tendem a manter seu estado de movimento, desde que não sofram ação de forças externas. Galileu ainda lançou uma nova forma de expressar essas ideias, ao fazer uma descrição matemática dos movimentos. Como ele mesmo afirmou: “O livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos” (tradução livre).

Na mesma época de Galileu, o astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), após examinar por anos as observações do astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601), mostrou que os caminhos celestes percorridos pelos planetas obedecem a órbitas elípticas e, dependendo da distância do planeta ao Sol, sua velocidade varia.

Além disso, Kepler escreveu um dos mais belos “versos” sobre o movimento planetário. Ele deduziu que a razão entre o cubo do raio da órbita executada pelo planeta e o quadrado do período de tempo gasto por ele para completar sua órbita é constante (R 3 /T 2 = constante). Essa lei ficou conhecida como a lei harmônica do movimento planetário.

Um primeiro desfecho
Os versos de Kepler foram uma das fontes de inspiração para o cientista inglês Isaac Newton (1642-1727) fazer o primeiro grande desfecho desse capítulo. Usando também os conceitos defendidos por Galileu, Newton propôs as três leis do movimento, a lei da inércia, o princípio fundamental da mecânica (que relaciona a força com a aceleração), o princípio de ação e reação (que diz que, quando um corpo sofre a ação de uma força, ele reage com outra de mesma intensidade, mas em sentido contrário) e a lei da gravitação universal (inspirada principalmente na lei harmônica de Kepler).

Newton mostrou que é possível descrever de forma unificada tanto os movimentos terrestres como os celestes. Para escrever essa parte da história, ele teve que criar uma nova “gramática” e novas “palavras”. Foi necessário inventar uma nova matemática. Newton criou o cálculo integral e diferencial para calcular, por exemplo, o movimento da Lua ao redor da Terra e os movimentos dos objetos terrestres.

Nos séculos seguintes, novos “versos” foram feitos para descrever a poesia dos movimentos. O físico francês Jean D’Alembert (1717-1783), o matemático e astrônomo francês Pierre de Laplace (1749-1827) e o físico irlandês William Hamilton (1805-1865), entre outros “poetas”, apresentaram de maneira elegante novas equações a partir de conceitos como a conservação da energia e da quantidade de movimento linear e angular.

Novos conceitos e equações matemáticas inseridos na física nos séculos 18 e 19 permitiram calcular a posição de um planeta que ainda não tinha sido observado: Netuno (foto: Nasa).

Essa nova maneira de expressar o movimento permitiu a solução de problemas que pareciam insolúveis quando descritos pelas equações de Newton. A partir desses novos conceitos, foi possível calcular a posição de um planeta que ainda não tinha sido observado: Netuno. O astro foi descoberto em 1846 pelo astrônomo alemão Johann Galle (1812-1910), a partir de cálculos realizados de forma independente pelo astrônomo inglês John Adams (1819-1892) e pelo matemático francês Urbain Le Verrier (1811-1877), com base na perturbação que esse planeta causava na órbita de Urano.

No final do século 19, parecia que esse capítulo do romance da física estava encerrado. Não haveria nada de importante a ser acrescentado. Apenas modificações de algumas “palavras” ou a introdução de um novo “adjetivo” no texto final. Não haveria novas histórias a serem contadas sobre o movimento.

Mudança de rumo
Entretanto, outras “tramas” que ocorriam com outros “personagens” indicavam um novo desfecho para a história. Os fenômenos térmicos e eletromagnéticos não se adequavam à descrição newtoniana.

Os eventos térmicos são associados a sistemas com muitas partículas, o que tornava inviável escrever equações de movimento como faz o modelo newtoniano. Naquela época, esses fenômenos eram descritos pelas leis da termodinâmica, que têm como princípios fundamentais a conservação da energia e o aumento da entropia (grandeza que está associada ao grau de ordem apresentado por determinado sistema). Esses princípios são conhecidos como 1ª e 2ª leis da termodinâmica, respectivamente.

Os fenômenos eletromagnéticos têm natureza diferente, pois eram descritos por manifestações de campos elétricos e magnéticos. O físico britânico James C. Maxwell (1831-1879) unificou a descrição desses fenômenos a partir de quatro equações fundamentais que ficaram conhecidas como equações de Maxwell do eletromagnetismo.

No começo do século 20, alguns novos autores reescreveram de forma profunda o romance da física. O físico alemão Albert Einstein (1879-1955) foi talvez o autor mais radical dessa época. Ele modificou os conceitos de espaço e tempo, ao propor que estes não são absolutos, mas sim relativos ao observador.

Além disso, Einstein introduziu o conceito de que a velocidade da luz é invariante, ou seja, qualquer observador sempre vê a luz com velocidade constante, criando assim a teoria da relatividade restrita. Ao fazer isso, ele unificou o eletromagnetismo e a mecânica, ou seja, encontrou uma maneira única de contar a história de dois personagens que pareciam inconciliáveis. Posteriormente, o físico generalizou esse conceito e criou a teoria da relatividade geral, que se tornou uma nova teoria da gravitação, pois modificou radicalmente aquela proposta por Newton 220 anos antes.

O capítulo final?

Vários dos “escritores” iniciais da física moderna estavam reunidos em Bruxelas (Bélgica) em 1927 para a 5ª Conferência de Solvay, que permitiu importantes avanços na área da mecânica quântica (foto: Benjamin Couprie/ Instituto Internacional de Física de Solvay).

Na mesma época, novos acontecimentos levaram vários autores a inventar novas maneiras de narrar os eventos da natureza. O físico alemão Max Planck (1858-1947), o físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962), o físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976), o físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961), além do próprio Einstein, entre muitos outros, criaram a física quântica, com um estilo absolutamente novo de expressar ideias e conceitos acerca do mundo físico. Essa época é conhecida como o início da física moderna, quando também surgiram os movimentos modernistas nas artes e na literatura.

 

Na física quântica, muitos dos conceitos físicos bem estabelecidos até aquela época tiveram que ser reformulados. Foram introduzidas ideias como a quantização da energia e da quantidade de movimento, a dualidade onda-partícula, entre outras. Esses conceitos abalaram de maneira profunda a trama que se desenvolvia há milhares de anos.

 

Esse novo personagem – a física quântica – tornou-se um dos principais protagonistas da narrativa, pois influencia profundamente a nossa forma de vida. A eletrônica, a energia nuclear, técnicas avançadas de diagnóstico como a ressonância magnética nuclear, entre outras descobertas, somente sugiram quando compreendemos melhor a “personalidade” desse personagem da trama da natureza.

 

Mas esse protagonista não consegue coexistir com o proposto por Einstein. A física quântica e a teoria da relatividade geral não podem ser utilizadas simultaneamente para descrever a natureza. A primeira descreve com sucesso o muito pequeno e a segunda, o universo em grande escala. Porém, são personagens muito distintos e, até o momento, incompatíveis.

 

O capítulo final do romance da física ainda está por ser escrito. Neste momento, milhares de autores se esforçam para tentar chegar a um desfecho. Novas teorias, como a das supercordas ou a da gravitação quântica, procuram conciliar os dois principais protagonistas da atual versão do romance da física. Talvez novos eventos levem os atuais escritores a imaginar um possível desenlace para essa história milenar. Talvez não seja possível encontrá-lo. Mas com certeza muitos capítulos ainda serão escritos.

 


Adilson de Oliveira

Departamento de Física

Universidade Federal de São Carlos

15/05/2009