Uma carícia para os nervos

Carinho é um santo remédio. Serve como tranqüilizante, faz bebês prematuros crescerem mais rápido, cria vínculos emocionais entre as pessoas… além de ser muito bom! Mas como o cérebro sabe quando você está sendo acariciado?

Pode parecer uma questão boba, de resposta óbvia: “Pelo tato, ué!”. De fato, uma carícia é um tipo de toque. O problema é que nem todo toque é sentido como uma carícia. De onde vem a diferença? Segundo um estudo sueco-canadense publicado em setembro na revista Nature Neuroscience , carícias são toques especiais por duas razões. Primeiro, porque são comunicados ao cérebro por fibras nervosas especializadas em detectar toques suaves e lentos, como carícias costumam ser. E segundo, porque a região do cérebro informada não é a mesma que cuida dos outros toques ao corpo, e sim uma outra, que integra o sistema límbico.

Fibras nervosas que servem às sensações do corpo existem basicamente em duas versões. A primeira são fibras grossas e encapadas por mielina (como fios elétricos envoltos numa capa isolante), que transmitem rapidamente medula acima sinais táteis causados por pressão e vibração da pele — ou seja, servem ao ’tato’ tradicional. A segunda são as chamadas fibras C, de pequeno calibre, envoltas ou não em mielina, que detectam lesões teciduais (mais adiante interpretadas como dor), frio e calor, e enviam os sinais mais lentamente ao cérebro.

Na prática, no entanto, a divisão de tarefas entre os dois tipos de fibra não é completa. Na pele de humanos e outros animais existe um tipo de fibra C fina, sem capa de mielina, que é sensível não à temperatura ou lesões, e sim a deformações vagarosas da pele. Essas fibras C táteis, apelidadas CT, aparentemente são lentas demais para oferecer ao cérebro qualquer informação útil à localização precisa de um toque. Para que elas servem então?

Uma resposta foi possível graças à colaboração de uma paciente identificada apenas como G.L., uma mulher de 54 anos que, devido a uma inflamação dos nervos, perdeu todas as fibras grossas mielinadas que servem ao tato do nariz para baixo. Conforme previsto pela função normalmente atribuída a essas fibras, G.L. não sente mais toques no corpo. Mas ainda é capaz de sentir dor e mudanças de temperatura na pele, funções características das fibras C — o que sugeria que também as fibras CT tivessem sido preservadas.

Suspeitando um envolvimento dessas fibras em aspectos emocionais do tato, Hakan Olausson e sua equipe decidiram usar um pincel largo e macio para acariciar lentamente os braços de G.L., sem que ela visse. Apesar de não sentir mais toques normais, G.L. sentia a carícia como um toque suave — nota 4, numa escala de 0 a 10 — e muito prazeroso, digno de nota 8. Já na palma das mãos — uma região naturalmente mais sensível, mas desprovida de fibras CT –, G.L. não sentia nada. Se as fibras grossas não existem mais e as outras fibras C cuidam apenas de temperatura e dor, só resta uma alternativa: são as fibras CT que transmitem a sensação de ser acariciada.

Para determinar quais regiões do cérebro recebem os sinais das fibras CT, G.L. passou por uma sessão de imageamento funcional do cérebro por ressonância magnética. Em quatro voluntários normais, carícias com o pincel causavam ativação do córtex somestésico — a região da superfície do cérebro que representa as sensações táteis do corpo –; do córtex pré-motor, envolvido na programação de movimentos; e da ínsula, uma região mais interna do córtex. Em G.L., em comparação, faltava a ativação do córtex somestésico, o que sugere que os sinais das fibras CT não se misturam com os demais do tato. Além do córtex pré-motor, o grosso da ativação pela carícia ocorria na ínsula.

Essa região ainda pouco explorada pela neurociência parece cuidar da representação do estado fisiológico do corpo, inclusive das mudanças associadas às emoções. No caso da carícia, a região insular ativada é próxima àquela envolvida na dor e nas sensações térmicas. Faz sentido: dor, temperatura e carícias são servidas por fibras C, que trafegam juntas medula espinhal acima e enviam sinais para a mesma região do cérebro.

Mas a ínsula não faz só isso. Um estudo inglês mostrou, em 2000, que uma região anterior da ínsula entra em ação especificamente quando se a pessoa amada. O que isso significava? Na época, não muito. O novo estudo, no entanto, mostrou que essa mesma região da ínsula era ativada quando G.L. e um dos quatro voluntários normais eram acariciados — e por um reles pincel! É claro que um pincel macio não substitui o prazer de se encontrar quem se ama. Mas a implicação é interessante: talvez essa região da ínsula seja a responsável pelo bem-estar fisiológico comum a ser acariciado ou enxergar o objeto do seu amor.

Receber carinho então deve ser bom porque beijos, afagos, cheiros e abraços são, entre outras coisas, excelentes estímulos para as tais fibras CT, que acabam acionando a ínsula. Mas logo quem faz quase tudo — a palma da mão — não tem fibras CT. Cientistas, agora expliquem esta: por que fazer carinho é tão bom?

Fonte: Olausson H, Lamarre Y, Backlund H, Morin C, Wallin BG, Starck G, Ekholm S, Strigo I, Worsley K, Vallbo AB, Bushnell MC (2002). Unmyelinated tactile afferents signal touch and project to insular cortex. Nature Neuroscience 5, 900-904.

Bartels A, Zeki S (2000). The neural basis of romantic love. NeuroReport 11, 3829-3834.  SM, Li J, Tomlin D, Cypert KS, Montague LM, Montague PR. Neural correlates of behavioral preference for culturally familiar drinks. Neuron 44, 379-387 (2004). 

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia
05/11/04