Uma história de sucesso

Jacarés, gaviais e crocodilos são os nomes populares para os representantes atuais de um grupo chamado de Crocodylomorpha. No total, esse grupo conta nos dias de hoje com apenas 23 espécies, confinadas em regiões com grandes corpos de água. Comparados a outros vertebrados – inclusive répteis –, os crocodilomorfos formam um grupo pequeno. Poucos, no entanto, imaginam que no passado eles eram bem mais diversificados, ocupando diversos nichos distintos – desde a terra firme até os ambientes marinhos.
 
A história dos crocodilomorfos começa há muito tempo – mais especificamente no Triássico Superior, há cerca de 220 milhões de anos. Ainda existe muito debate sobre qual é o crocodilomorfo mais primitivo, mas algumas formas encontradas na Argentina (como o Pseudhesperosuchus ) têm sido listadas entre as mais antigas. No Brasil também temos uma forma muito primitiva: o Barberenasuchus brasiliensis , encontrado na Formação Santa Maria, que tem cerca de 220 milhões de anos.
 
É importante notar que os crocodilomorfos mais primitivos eram animais terrestres, que tinham os membros anteriores e posteriores bem mais alongados do que as formas atuais, e dispostos mais abaixo do corpo – e não em posição lateral como podemos observar, por exemplo, no jacaré-de-papo-amarelo, que vive hoje em dia no Mato Grosso. As formas primitivas de crocodilomorfos eram tão diversificadas que algumas chegaram a viver no mar, como o Chenanisuchus , recentemente encontrado no Marrocos (veja nas Paleocurtas ao fim do texto). No oceano, ele provavelmente disputava alimento com outros grupos de répteis marinhos, com os mosassauros, plesiossauros e ictiossauros.
 
No Brasil, a maioria dos crocodilomorfos foram encontrados em sedimentos do Cretáceo. Entre as formas mais interessantes está o Susisuchus anatoceps , procedente do calcário laminado que se depositou há 110 milhões de anos no Ceará, no Nordeste. O Susisuchus é importante por possuir uma carapaça dérmica formada por algumas filas de osteodermos (pequenas placas ósseas que recobrem o corpo dos crocodilomorfos) bem semelhantes aos que encontramos nas formas modernas.
 
Alguns desses animais eram bastante curiosos e, acredita-se, deviam competir com os dinossauros carnívoros. Uma dessas espécies é o Baurusuchus pachecoi , descrita por Llewellyn Ivor Price, um dos principais paleontólogos brasileiros, cujo centenário de nascimento é comemorado neste ano. Essa espécie foi encontrada em depósitos formados há aproximadamente 80 milhões de anos no estado de São Paulo e foi classificada em um grupo a parte, batizado de Baurusuchidae. 
 
Price observou que o Baurusuchus tinha dentes achatados com serrilhas, semelhantes aos encontrados em dinossauros carnívoros, o que sugere que ele deve ter ocupado um nicho semelhante. É interessante salientar que o Baurusuchus tinha o crânio mais achatado lateralmente do que os crocodilomorfos modernos, além de apresentar as narinas voltadas para frente, o que indica que tinha hábitos terrestres.
 
Depois dessa espécie, foram encontrados outros baurusuquídeos, incluindo o Stratiotosuchus maxhechti , descoberto nos mesmos depósitos do estado de São Paulo. Com seus cinco metros de comprimento, essa espécie tinha quase o dobro do tamanho do seu ‘primo’ Baurusuchus , e deve ter sido um dos principais predadores do seu tempo, ocupando o topo da cadeia alimentar. Certamente os baurussuquídeos deviam ficar prontos para o ataque, à espreita de uma presa, que podia ser até um dinossauro, como mostra a primeira ilustração na coluna ao lado.

Uma hipótese semelhante já foi formulada para um outro crocodilomorfo – o Sarcosuchus imperator , encontrado em depósitos de 100 milhões de anos no Níger (África) e na Bahia.  Apesar de ser bem maior – chegava possivelmente à casa dos 10 metros –, o Sarcosuchus não tinha as mesmas adaptações que o Baurusuchus ou o Stratiotosuchus , e era mais semelhante aos crocodilomorfos atuais, devendo passar maior tempo dentro da água.

 
Para ilustrar as diferentes formas que os crocodilomorfos alcançaram durante sua história evolutiva, temos o Chimaerasuchus paradoxus , do grupo Notosuchidae, encontrado em depósitos de 110 milhões de anos da província de Hubei, na China. Essa espécie, da qual se conhece parte do crânio (veja figura ao lado), possuía dentes com bases largas, alguns com uma fileira de projeções chamadas de dentículos. Sua dentição levou os pesquisadores a sugerir que essa espécie deveria ter tido um hábito… herbívoro! Isso significa que o Chimaerasuchus pode ter se alimentado de plantas – o que certamente a maioria das pessoas sequer cogita quando se fala nesse tipo de répteis.
 
Animais pertencentes ao mesmo grupo dessa forma chinesa – como o Candidodon , o Mariliasuchus ou o Sphagesaurus – são encontrados em certa quantidade no Brasil, mostrando que esse grupo de crocodilomorfos devia estar bem adaptado nesta região. Outras formas de notossuquídeos – algumas bem parecidas com as encontradas em nosso país – também foram identificadas na Argentina e na África.
 

Por fim, vale a pena ressaltar a existência de um importante depósito com crocodilomorfos fósseis no Acre. São diversas formas, muitas ainda não estudadas, encontradas em rochas do Mioceno (com cerca de 8-6 milhões de anos de idade). Entre elas, destaca-se o Purussaurus brasiliensis (veja na figura ao lado), cujo tamanho foi estimado por alguns pesquisadores como algo em torno de 15 metros! Apesar de terem vivido em épocas e lugares bem diferentes, o maior exemplar do dinossauro T. rex chegava a cerca de 14 metros – o que faz do nosso Purussaurus um predador ainda maior! Já pensou se o Spielberg descobre isso?           


Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
02/09/05
 

Veja imagens na Galeria 

 

Paleocurtas 

As últimas do mundo da paleontologia
(clique nos links sublinhados para mais detalhes)

Foi descoberto no Quênia o primeiro fóssil de chimpanzé. O material consiste em dentes isolados (pelo menos três) encontrados em depósitos formados durante o Pleistoceno (há cerca de 545 mil anos), que já forneceu algumas centenas de fósseis de hominídeos. A descoberta é muito significativa, já que se pensava que as condições climáticas da região impediriam que chimpanzés – os animais mais aparentadas com a espécie humana – vivessem ali. O estudo acaba de ser publicado na Nature e deve levar a uma melhor compreensão dos passos que levaram ao surgimento do homem e formas assemelhadas.

Foram descobertos na África do Sul embriões do dinossauro Massospondylus carinatus , espécie pertencente ao grupo dos prossaurópodes, que reúne formas herbívoras. O material, encontrado em rochas do Jurássico, consiste em uma ninhada de seis ovos com até 6 cm de diâmetro, cinco dos quais continham embriões articulados. Os resultados do estudo, publicado na Science , sugerem que essa espécie deve ter cuidado e auxiliado os seus filhotes logo após o nascimento, possibilidade que só tinha sido levantada até então para algumas poucas formas do Cretáceo.

O Instituto de Paleontologia do Museu de História Natural de Berlim anunciou que parte de sua exposição permanente será renovada. Com isso, o Knochen Keller (‘Porão dos Ossos’ em português), que contém diversos restos de dinossauros de grande tamanho provenientes de Tendaguru (África) e outros locais, ficará fechado até pelo menos meados de 2006. A reinauguração dessa exposição será um dos maiores eventos da paleontologia da Alemanha, já que o Museu de História Natural de Berlim, que ficava na antiga Alemanha Oriental, é uma das principais instituições com fósseis da Europa.

Cientistas da França e do Marrocos descreveram uma nova espécie de crocodilomorfo em rochas do Paleoceno (cerca de 60 milhões de anos atrás). Conhecida a partir de um crânio, a espécie Chenanisuchus lateroculi pertence ao grupo Dyrosauridae, que reúne crocodilomorfos marinhos bastante diversificados no mesozóico. O Chenanisuchus difere dos demais por possuir a parte anterior do crânio relativamente curta e órbitas afastadas de posição mais lateral. O estudo publicado pela Palaeontology mostra que este grupo de formas marinhas era mais diversificado do que se supunha.

Pesquisadores canadenses fizeram uma importante descoberta: um mamífero venenoso! O material consiste em um crânio parcial com as arcadas dentárias completas da espécie Bisonalveus browni – que já tinha sido descrita anteriormente com base em material mais incompleto – procedente de rochas da Formação Paskapoo com 60 milhões de anos de idade (Paleoceno) na região central de Alberta (Canada). O Bisonalveus possui nos caninos um canal bastante pronunciado por onde o animal introduzia o veneno ao atacar as suas vítimas – similar ao de várias cobras nos dias de hoje. A descoberta, publicada na Nature em 23 de junho, é muito interessante: até aqui, somente poucas espécies de mamíferos atuais eram tidas como venenosas, possuindo uma saliva tóxica, mas não dentes com a morfologia igual à do Bisonalveus . É preciso examinar com cuidados outros mamíferos fósseis para verificar se mais espécies desenvolveram essa estratégia para capturar suas presas.

Um pesquisador alemão apresentou resultados de uma pesquisa sobre peixes seláquios (tubarões e raias) da Ilha de Seymour, na Península Antarctica. Os espécimes são provenientes de rochas do Eoceno (há cerca de 45-35 milhões de anos). Já foram encontradas 20 espécies de tubarões e 2 de raias. A pesquisa, publicada no Journal of Vertebrate Paleontology , identificou restos de mais duas formas de tubarão, aumentando a diversidade destes peixes nestes depósitos.

 

 

Envie comentários e notícias para esta coluna: [email protected]

Leia mais sobre o paleontólogo Alexander Kellner
e a proposta da coluna “Caçadores de Fósseis”.