Uma interação de 140 milhões de anos

Quando observamos a natureza, podemos constatar a interação entre diversos organismos. São herbívoros que se alimentam de vegetais, carnívoros nutrindo-se de herbívoros, aves consumindo frutos e contribuindo para a dispersão de sementes, insetos polinizando as plantas. Isso sem contar a ação (e interação) de outros elementos, como microrganismos, além de toda a questão ambiental. Assim funcionam os ecossistemas modernos.

Mas como é possível investigar essas interações entre organismos em um ecossistema que não existe mais? De que forma podemos compreender as relações entre fauna e flora em um ambiente que existiu há milhões de anos e cujas únicas evidências são uns poucos elementos preservados nas rochas? Se achar fósseis já não é fácil, imaginem tentar encontrar evidências diretas que permitam estabelecer essas interações.

Esse é justamente o tema de uma pesquisa que acaba de ser publicada e que chamou a atenção dos paleontólogos. Trata-se de um trabalho que estabeleceu a relação entre insetos e troncos petrificados de milhões de anos na famosa bacia do Araripe. O estudo, publicado no Journal of South American Earth Sciences, foi realizado pelas pesquisadoras Etiene Fabbrin Pires, da Universidade Federal do Tocantins, e Margot Guerra Sommer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Em busca de um tema
A própria história de como as pesquisadoras chegaram a realizar esse estudo é inusitada. Ao finalizar o mestrado, Etiene estava à procura de um tema sobre plantas fósseis para desenvolver durante o doutorado. Orientada pela professora Margot, ela resolveu realizar trabalho de campo em diversas localidades do Nordeste, particularmente nos estados do Ceará e de Pernambuco. Dentre os vários fósseis coletados, aluna e orientadora haviam depositado uma enorme esperança em alguns restos vegetais de um depósito pouco conhecido. De volta a Porte Alegre, veio a frustração: o material revelou-se não preservado o suficiente para o desenvolvimento de uma tese de doutorado.

Sem outra solução no momento, Etiene se voltou para uns restos de troncos coletados durante o trabalho de campo em uma unidade conhecida como Formação Missão Velha. Situada abaixo do famoso Grupo Santana, que reúne alguns dos principais depósitos fossilíferos do país, a Formação Missão Velha é, com o perdão do trocadilho, “velha” conhecida dos alunos de geologia e paleontologia. Devido à excepcional concentração de troncos fossilizados, tornou-se parada obrigatória (e bem-vinda!) em qualquer excursão de futuros paleontólogos à região do Araripe, no estado do Ceará.

Formação Missão Velha
Os troncos foram descobertos em um depósito conhecido como Formação Missão Velha, na bacia do Araripe, no Ceará (foto: Etiene Fabbrin Pires/ Universidade Federal do Tocantins).

A idade dessas camadas, segundo os estudos mais recentes, varia de 150 a 140 milhões de anos, período próximo ao limite entre o Jurássico e o Cretáceo. Os troncos têm diâmetros que variam de cinco centímetros a um metro e chegam a atingir três metros de comprimento.

A ideia de Etiene era realizar um estudo com os anéis de crescimento dos troncos, na tentativa de entender um pouco mais sobre essas árvores – todas gimnospermas (plantas primitivas que, ao contrário das angiospermas, não possuem a semente envolvida em frutos). Talvez a pesquisadora pudesse adicionar novos dados aos estudos já realizados sobre o ambiente vigente há milhões de anos naquela região.

Diversas análises mostraram que as perfurações nos troncos resultaram da ação de insetos

Logo no início, a então aluna de doutorado percebeu que alguns dos troncos exibiam diversas perfurações, algumas formando canais. Em conversa com sua orientadora, surgiu a suspeita de que aquelas estruturas fossem de origem biológica e não alguma feição ocorrida durante o processo de fossilização. Algum tempo (e diversas análises) depois, as suspeitas se confirmaram: aquelas perfurações resultaram da ação de insetos. Duas coisas estavam agora decididas. Primeiro, era necessário voltar ao campo para coletar mais material. Segundo, uma aluna acabava de encontrar o seu tema de doutorado!

Tronco fossilizado no campo
Foram coletados troncos com diâmetros que variam de cinco centímetros a um metro e que chegam a atingir três metros de comprimento (foto: Etiene Fabbrin Pires/ Universidade Federal do Tocantins).

Uma savana Jurássica
Além de voltar para o campo, as pesquisadoras fizeram algo muito comum na paleontologia: consultaram coleções de fósseis depositas em outras instituições. Assim, Etiene acabou encontrando mais troncos da Formação Missão Velha no Instituto de Geociências da UFRJ, e pôde prosseguir com o seu doutorado.

O estudo, feito com base em lâminas petrográficas e seções polidas dos troncos, gerou vários resultados interessantes. Entre eles, foi corroborada a hipótese de que a temperatura na região no limite entre o Jurássico e o Cretáceo era, em linhas gerais, quente, com alterações cíclicas entre climas mais secos e mais úmidos, o que condiz com a proposta da existência de uma savana tropical (com coníferas) naquela parte do Ceará.

Além disso, as pesquisadoras descobriram que as perfurações nos troncos haviam sido feitas durante a vida da árvore, e não quando esta estava tombada no terreno ou parcialmente soterrada. Alguns dos canais exibiam estruturas escuras e hexagonais, identificadas como coprólitos (excrementos fossilizados) dos insetos causadores das perfurações.

Coprólitos em um tronco fossilizado
Em algumas das perfurações nos troncos, foram identificados excrementos fossilizados (estruturas escuras) dos insetos (foto: Etiene Fabbrin Pires/ Universidade Federal do Tocantins).

Agora ficava em aberto somente uma pergunta: quem era o autor das perfurações e dos canais?

Talvez seja surpresa para o leitor, mas vários grupos de insetos podem perfurar troncos. Os mais comuns são besouros e cupins, porém vespas, abelhas, formigas e mariposas, por exemplo, também perfuram madeira.

A tarefa de apontar o causador dos furos era ainda mais difícil, já que, ao contrário do que acontece no Grupo Santana – onde existem vários insetos muito bem preservados (alguns exibidos na exposição Dinossauros no Sertão, no Museu Nacional/UFRJ) –, nos depósitos da Formação Missão Velha nenhum inseto é conhecido.

As autoras da pesquisa sugerem que alguma forma extinta de cupim seja a responsável pelas perfurações

A comparação com troncos atacados por insetos nos dias de hoje e a análise do formato dos coprólitos levaram as autoras a sugerir que alguma forma extinta de cupim seria a responsável pelas perfurações. Também foi levantada a possibilidade de que os troncos tenham sido atacados durante fases prolongadas de seca, quando as árvores se encontravam debilitadas.

Apesar das incertezas, naturais quando se tenta remontar um quebra-cabeça com poucas peças, um ponto é consensual: essa interação de insetos e plantas é um caso raro na paleontologia. Ao mesmo tempo, o exemplo desse estudo relembra uma das máximas na pesquisa de fósseis: quando vamos para o campo, sempre temos o objetivo de encontrar determinado tipo de organismo, mas geralmente acabamos por fazer outros achados, às vezes bem raros e imprevisíveis.

 

Confira mais imagens da pesquisa.

Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
10/11/2009

 

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
(clique nos links sublinhados para mais detalhes)

 

Acaba de ser lançado o livro Os dinossauros do Brasil, de Roberto Candeiro, Agustín Martinelle e Ezequiel Vera. Mais informações sobre a obra – publicada na Argentina (Ed. Buenos Aires) – podem ser obtidas diretamente com o primeiro autor: [email protected].

Está sendo organizada em Luxor, no Egito, a Fifth International Conference on the Geology of the Tethys Realm. Essa reunião científica será realizada de 2 a 5 de janeiro de 2010 e se destina a apresentar diversos aspectos relacionados ao mar de Tethys – que existia onde atualmente se encontra o mar Mediterrâneo.

A National Geographic Magazine (incluindo a versão em português) acaba de publicar um artigo sobre crocodilomorfos fósseis, com uma nota enfocando as novas – e extraordinárias – formas recentemente encontradas na África. O número (de novembro) já está nas bancas.

Romain Vullo (Universidade de Rennes, França) e colaboradores descreveram na Geological Magazine (doi:10.1017/S0016756809990525) os primeiros registros de pterossauros nos famosos depósitos espanhóis de Las Hoyas, depositados durante o Cretáceo.

A revista The Anatomical Record organizou um volume inteiramente dedicado à anatomia dos dinossauros. Editado por Peter Dodson (Universidade da Pensilvânia) e Jeffrey Laitman (da própria revista), esse número especial contém artigos que abordam desde a respiração até a anatomia dos músculos dos dinossauros.

Roger Benson (Universidade de Cambridge, Inglaterra) e colegas revisaram o grupo de dinossauros conhecido como Allosauroidea. A pesquisa, publicada na Naturwissenschaften (doi:10.1007/s00114-009-0614-x), revela que, ao contrário do que se supunha, essas formas carnívoras não se extinguiram no Jurássico, mas sobreviveram até o final do Cretáceo.