Uma perspectiva luminosa

Os caminhos da ciência são mesmo surpreendentes. Quem esperaria que os “interruptores” de luz situados na retina pudessem ser utilizados para normalizar a respiração de acidentados? Os interruptores em questão são as moléculas fotossensíveis que a retina apresenta, capazes de abrir canais na membrana das células nervosas, permitindo a passagem de íons e gerando assim potenciais elétricos – os sinais de informação que o sistema nervoso utiliza.

A ideia de usar os interruptores com esse fim foi de um grupo de pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade Case Western Reserve, em Cleveland, nos Estados Unidos. O grupo, dirigido pelo neurocientista Jerry Silver, bolou uma forma de “reativar” os neurônios de animais de laboratório cuja medula espinhal havia sido traumatizada.

 

Os neurônios sobreviventes são geralmente desativados pela lesão. Mas se eles pudessem produzir os tais interruptores moleculares, imaginou o grupo, talvez fosse possível provocar a sua reativação funcional estimulando-os com luz. A ideia deu certo, por enquanto apenas em ratos, e foi divulgada há dois meses na prestigiosa revista da Sociedade Norte-americana de Neurociência.

Controle da respiração
Nos pacientes que sofrem traumatismos da medula na altura do pescoço, muito frequentemente ocorre insuficiência respiratória, além da paralisia dos músculos abaixo da lesão, incontinência urinária e outros sintomas. As dificuldades respiratórias provêm da dificuldade de comando do diafragma, o músculo que separa o tórax do abdome, e que se contrai a cada ciclo respiratório quando há necessidade de inspirar o ar para dentro dos pulmões.

Os neurônios de comando desse músculo ficam na medula, e são regulados ritmicamente por outros neurônios situados mais acima. Com o traumatismo no pescoço, ocorre uma interrupção desse controle rítmico da inspiração, e fica difícil respirar.

As lesões parciais da medula interrompem algumas fibras nervosas, mas não outras. No entanto, as que permanecem muitas vezes não são suficientes para comandar adequadamente o diafragma.

Muitas vezes, entretanto, a lesão é incompleta, unilateral, e o lado preservado da medula pode assumir a função do lado lesado. O problema é que os neurônios do lado lesado ficam “deprimidos” pela falta do comando rítmico vindo de cima, e não obedecem ao comando mais fraco do lado oposto.

Tudo ficaria mais fácil se fosse possível “ajudar” esses neurônios, estimulando-os a gerar impulsos para o diafragma sob comando do lado preservado. Foi o que pensaram os pesquisadores, que inventaram um experimento engenhoso para conseguir esse objetivo.

Experimentos com camundongos
A primeira etapa do experimento consistiu em produzir ratos com lesões na medula, o que era feito sob anestesia por meio de uma cirurgia. Nesse mesmo momento, os pesquisadores injetavam na região logo abaixo da lesão uma solução contendo vírus não-patogênicos cujo DNA tinha sido modificado para codificar a canalrodopsina-2, uma das moléculas interruptoras de luz das células da retina mencionadas acima.

Alguns dias depois, os mesmos animais eram novamente estudados. Os pesquisadores constataram logo que a metade do diafragma comandada pelo lado lesado da medula estava paralisada, o que puderam medir por meio de um exame chamado eletromiograma. No entanto, o diafragma recuperava sua atividade rítmica quando a medula era estimulada com luz azul canalizada por uma fibra óptica.

O mais interessante de tudo é que, com uma estimulação intensa e prolongada, a capacidade dos neurônios medulares de recuperar o comando do diafragma tornava-se duradoura. Era como se eles tivessem reaprendido a função, que assim se tornava permanente, armazenada na memória motora.

No experimento, o lado da medula que permanecia intacto (eletromiogramas de cima) apresentavam contrações normais do lado correspondente do diafragma, com ou sem fotoestimulação. O lado lesado, no entanto, só comandava o seu hemidiafragma com a fotoestimulação (à direita). Modificado de Alilain e colegas (2008).

A explicação para o fenômeno não é complicada. A canalrodopsina-2, ao ser ativada pela luz, deixa entrar no neurônio uma avalanche de íons positivos, o que altera a polaridade natural da membrana, causando uma despolarização, isto é, uma diminuição da diferença de potencial entre os lados de dentro e de fora da célula.

Acontece que a despolarização da membrana “liga” as moléculas receptoras desses neurônios do lado lesado, que se tornam sensíveis aos neurotransmissores dos neurônios do lado preservado da medula. O lado preservado então consegue impor o ritmo da respiração ao lado lesado, e o diafragma responde contraindo-se mais fortemente e de acordo com esse ritmo. A respiração se normaliza.

Aplicação em humanos
O leitor pode estar se perguntando como é que algo semelhante poderia ser aplicado a pacientes humanos reais. Como é que se poderia introduzir vírus com DNAs, depois estimular com luz os neurônios…

Bem, introduzir vírus na medula não é algo tão difícil, embora ainda dependa de um procedimento invasivo. Quem sabe a nanotecnologia dê conta dessa dificuldade com mais eficiência, veiculando os vírus por meio de nanopartículas inseridas pela circulação. E a fotoestimulação no fundo pode não ser necessária, porque poderiam ser utilizadas outras sequências de DNA, capazes de codificar canais iônicos ativáveis de outro modo – por meio químico, por exemplo.

O mais significativo do trabalho não é esse lado técnico, mas o conceito de que os neurônios de comando respiratório são dotados de plasticidade, ou seja, capacidade de “reaprender” a sua função desativada pela lesão. Pode-se prever que esse conceito possa ser desenvolvido modificando os detalhes técnicos para então tentar aplicá-lo a pacientes. E não apenas para o controle da respiração, mas também para a recuperação motora, o controle dos esfíncteres e as demais aflições que esses pacientes sofrem. Quem viver, verá. 

SUGESTÕES PARA LEITURA
Y.P. Zhang e T.G. Oertner (2007) Optical induction of synaptic plasticity using a light-sensitive channel. Nature Methods 4:139-141.
B.R. Arenkiel e colaboradores (2007) In vivo light-induced activation of neural circuitry in transgenic mice expressing channelrhodopsin-2. Neuron 54:205-218.
W.J. Alilain e colaboradores (2008) Light-induced rescue of breathing after spinal cord injury. Journal of Neuroscience 28:  11862-11870  . 

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
30/01/2009