Uma questão de sincronia

Satélite utilizado no experimento Topex-Poseidon para investigar a necessidade das correções relativísticas no sistema GPS e os efeitos da velocidade dos receptores (arte: Nasa).

Na coluna de março, falei sobre o uso de relógios atômicos no sistema de posicionamento global (GPS, na sigla em inglês). Concluí a coluna dizendo que, sem o relógio atômico, esse sistema seria inviável. Mas o que seria do GPS sem a relatividade? Por causa das correções resultantes das teorias da relatividade restrita e geral, a precisão do sistema encontra-se entre 5 e 10 metros. Se essas correções não fossem aplicadas, o erro de localização seria superior a 11 quilômetros por dia! Vejamos em detalhes como é essa história.

Além da extrema precisão na marcação do tempo, o GPS requer uma sincronização quase perfeita entre os vários relógios colocados nos satélites e nos receptores terrestres. O problema da sincronização foi um dos primeiros a ser abordado por Einstein no início da sua teoria da relatividade restrita, mas ele não viveu para apreciar essa fantástica aplicação tecnológica dos seus estudos.

Surgida no início dos anos 1960, mais de cinco anos depois da morte de Einstein, a idéia de um sistema de posicionamento global como hoje o conhecemos só deslanchou em 1973. Naquele ano, foi criado o Navstar – (sigla em inglês para ‘sistema de navegação com medição do tempo e posição’, em tradução livre), sob a coordenação do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Iniciado com quatro satélites equipados com relógios atômicos, o GPS chegou à atual configuração com 24 satélites em 1994.

Ao longo de todo esse período estabeleceu-se uma polêmica sobre a necessidade das teorias da relatividade restrita e geral para a correta sincronização das informações temporais. Não se trata de uma questão simples. Gente com boa formação científica andou duvidando disso. Outros andaram produzindo confusão na cabeça de inocentes. Para acompanhar a história nos mínimos detalhes, cálculo a cálculo, é preciso dominar uma matemática de final de curso universitário ou ter confiança nos autores.

Como é usual atualmente, podemos pesquisar o assunto no Google ou na “teia da ciência” elaborada pela Thomson Scientific (ex-Instituto para Informação Científica – ou ISI, na sigla em inglês). Mas isso requer alguma esperteza: não dá para confiar no primeiro texto que encontramos pela frente. Entre tantos trabalhos recuperados na “teia da ciência” e no Google, encontrei alguns de um professor de física da Universidade do Colorado (EUA) que me pareceram interessantes e confiáveis.

O autor desses trabalhos é Neil Ashby, consultor do Instituto Nacional de Padronização e Tecnologia (Nist, na sigla em inglês). Além de inúmeros artigos técnicos, ele publicou também um artigo para o grande público na Physics Today de maio de 2002, intitulado “Relativity and the Global Positioning System”. Vejamos o que ele diz.

A explicação de Ashby

Capa da Physics Today de maio de 2002, em que Neil Ashby publicou seu artigo sobre relatividade e GPS.

Os relógios atômicos navegam nos satélites a uma altura média de 20 mil km e velocidade próxima de 4 km/s. De acordo com a relatividade restrita, um relógio movendo-se com essa velocidade marcará o tempo mais lentamente do que um outro estacionário – a freqüência do relógio em movimento é menor, com uma diferença da ordem de uma parte em 10 bilhões. Parece muito pouco, mas está dentro da precisão dos relógios atômicos. Logo, é preciso corrigir os relógios para que todos marquem o tempo na mesma freqüência.

Por outro lado, na altura em que os satélites navegam, os efeitos dos campos gravitacionais fazem com que o relógio marque o tempo mais rapidamente. Nesse caso, a variação é de aproximadamente 5 partes em 10 bilhões em relação aos relógios que estão na Terra.

Esses são os efeitos mais evidentes das teorias da relatividade restrita e geral. A correção acima – aproximadamente 5 partes em 10 bilhões – já é introduzida nos relógios antes da sua colocação no satélite. Chama-se isso de ajuste de fábrica.

Antes do lançamento do primeiro satélite, em 1977, muitos duvidavam da necessidade dessa correção. Examinaram a freqüência do primeiro relógio atômico posto em órbita depois de aproximadamente 20 dias em operação. Constataram um aumento da freqüência da ordem de 4,42 partes em 10 bilhões. A teoria da relatividade previa 4,46! Depois disso, ninguém mais discutiu a necessidade do ajuste de fábrica.

Os teóricos continuam refinando seus cálculos e prevendo correções que serão necessárias à medida que aumentar a precisão tecnológica. O campo gravitacional do planeta, por exemplo, depende da distribuição da massa terrestre e, por isso, correções serão necessárias devido à forma oval da Terra.

Além disso, também devem ser levadas em conta pequenas variações na órbita dos satélites, assim como o grau de achatamento da elipse que define a órbita. Tecnicamente, isso é conhecido como excentricidade orbital. Se o efeito da excentricidade não for considerado, isso pode resultar em um erro superior a 8 metros por dia.

Correção nos receptores

Aparelhos receptores de GPS de três marcas distintas. No início do sistema, a correção da excentricidade da órbita dos satélites tinha que ser feita por um programa embutido em cada receptor (foto: Stefan Kühn) .    

No início do programa GPS, os computadores a bordo dos satélites eram muito limitados e os responsáveis (autoridades e fabricantes) decidiram deixar a correção da excentricidade por conta dos receptores. Receptores baratos, por exemplo, com uma precisão inferior a 100 metros, não precisam incluir esse tipo de correção. Mas você talvez queira saber como o receptor vai fazer essa correção. O sinal do satélite contém as informações necessárias para os cálculos: tudo o que o fabricante tem que fazer é inserir um programa para realizá-los.

Talvez hoje tudo pareça tranqüilo quanto a essas correções relativísticas, mas no início a história era outra. Era uma confusão, e Ashby diz não saber como cada fabricante enfrentou o problema. Sabe-se, por exemplo, que um fabricante estava duplicando a correção. Entre 1989 e 1990, ele consultou uma dúzia de fabricantes sobre as correções relativísticas nos seus receptores GPS. Apenas dois responderam. Algum tempo depois circulou um boato segundo o qual os fabricantes temiam que Ashby estivesse tentando roubar seus segredos.

Embora o GPS seja atualmente uma tecnologia de uso popular no Brasil, seu tratamento em nível acadêmico é muito pequeno, dada a sua importância. Os arquivos da Thomson mostram apenas 48 trabalhos produzidos no Brasil ou com a participação de brasileiros.

Com 10 ou mais citações, destacam-se os trabalhos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), como mostra o mapa do GPS no Brasil. O trabalho mais citado, no entanto, com 77 citações até 22/05/2008, é uma revisão da literatura sobre mapeamento digital de solos a partir de sistemas de informações geográficas, realizada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em colaboração com a Universidade de Sydney (Austrália).

Em segundo lugar, com 25 citações, aparece um trabalho com a participação do Inpe em colaboração com a Universidade de Cornell (EUA) sobre o efeito da ionosfera na recepção de sinais do GPS. Outros trabalhos nessa mesma área foram publicados por pesquisadores do Inpe.

Amazônia e GPS

Estudos feitos com o uso de um receptor de GPS permitiram a pesquisadores do Inpe um melhor entendimento dos relâmpagos.    

Outro destaque nesse campo são as pesquisas sobre GPS feitas na floresta amazônica. Um exemplo é o mapeamento com resolução entre 1 metro e 4 metros da região próxima a Itacoatiara (AM), realizado pela primeira vez em 2003 pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em colaboração com a Universidade de Siracusa e a Universidade do Missouri, ambas nos EUA. Esse tipo de mapeamento é muito útil para estudos interdisciplinares, incluindo sensoriamento remoto, ecologia e manejo de recursos naturais.

Um trabalho nessa mesma linha foi realizado pelo Inpe, em colaboração com a Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, com a Universidade de Massachusetts e com o Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), todos nos EUA. Trata-se de um estudo de sensoriamento remoto da floresta amazônica, no qual o GPS foi utilizado para gerar mapas digitais a partir de vídeos obtidos com uma câmera instalada em um avião Bandeirante.

Para concluir, vale mencionar uma aplicação bastante engenhosa elaborada pelo Inpe em colaboração com as Universidades de Washington e de Utah, ambas nos EUA. Trata-se de um estudo sobre relâmpagos em São Paulo (clique aqui para saber mais sobre o assunto). Graças à utilização de um receptor GPS, medidas de campo elétrico com alta resolução temporal sugerem que esses campos podem ser muito maiores durante fortes tempestades do que se previa anteriormente.


Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
23/05/2008