Uma viagem mental ao futuro

A neurociência dá os primeiros passos para compreender os mecanismos cerebrais da viagem mental ao futuro.

Se alguém lhe pedir que pense no que poderá estar fazendo daqui a um ano, você não terá a menor dificuldade. Talvez lhe venha à mente algum projeto relacionado a seu trabalho, a sua família, ou a si próprio. Mas se a questão for projetar o que estará fazendo daqui a dez ou vinte anos, a coisa fica muito mais difícil.

Essa dificuldade de lidar com o tempo próximo e o remoto é a mesma da memória chamada episódica, ou autobiográfica. Você se lembra do que fez semana passada, mas dificilmente se lembrará do que fazia na primeira semana de março de 1988, há exatos vinte anos.

Os psicólogos e neurocientistas sempre conheceram essa característica da memória, mas não tinham atinado com a sua semelhança em relação à função de projetar ou prever o futuro, algo que fazemos diariamente para organizar a vida presente.

Várias observações e experimentos têm associado os mecanismos da memória episódica com a capacidade de viajar mentalmente no tempo para prever o futuro. Os neurologistas sabem que os alcoólatras muito severos, por exemplo, apresentam um sério distúrbio da memória chamado síndrome de Korsakoff. Sua memória de eventos passados se apaga quase completamente: amnésia retrógrada completa. Não lembram de sua família, de sua história, dos fatos de sua juventude. Mas poucos sabem que eles também se tornam incapazes de planejar o futuro. O mesmo foi observado em pacientes com lesões bilaterais de uma região-chave do sistema nervoso, relacionada à memória: o hipocampo.

Uma memória do futuro?
O trabalho foi feito por um grupo de pesquisadores do Instituto de Neurologia do University College de Londres, liderado por Demis Hassabis. Consistiu simplesmente em medir a capacidade dos pacientes, comparados a pessoas normais, em relatar experiências novas imaginadas, que poderiam ser vividas no futuro.

Os participantes tiveram que fazer exercícios mentais do seguinte tipo: imagine-se em um museu da Europa, numa viagem de férias. Ou então: imagine-se trabalhando em um navio nas proximidades do Havaí. Medidas simples da riqueza das imagens evocadas, dos detalhes de acontecimentos imaginados, e outros aspectos indicaram aos pesquisadores que os pacientes produziam imagens muito mais pobres que as pessoas normais. 

O esquema apresenta o sistema cerebral de viagem mental no tempo, que utilizamos para imaginar o futuro com base nos eventos do passado. Reproduzido de Schacter e colaboradores (2007).

Pode parecer algo vago, e de fato é. Mais objetivo foi o trabalho do grupo de Kathleen McDermott, do Departamento de Psicologia da Universidade Washington, nos EUA. A equipe reuniu voluntários sadios que eram levados a exame de ressonância magnética funcional e ao mesmo tempo solicitados a pensar em eventos futuros ou passados que poderiam acontecer ou já teriam acontecido com eles, relacionados a pistas apresentadas pelos pesquisadores: um churrasco, um carro, uma festa de aniversário. O exame permitia identificar o conjunto de áreas cerebrais ativas durante o pensamento orientado para o passado ou para o futuro.

Resultou que as regiões ativas eram quase as mesmas, mudando apenas seu grau relativo de ativação. Quer dizer: as mesmas regiões cerebrais que empregamos para lembrar de eventos passados de nossa história pessoal (memória episódica) são empregadas para imaginar eventos futuros. O mecanismo foi chamado muito apropriadamente de viagem mental no tempo, e as regiões cerebrais envolvidas passaram a constituir um sistema de viagem no tempo de que dispõem nossos cérebros.

Uma grande discussão se criou: esse sistema de viagem mental no tempo é algo exclusivamente humano ou compartilhado também pelos animais? Possivelmente a discussão não terá fim, porque não há como saber se o nosso cachorrinho prevê o dia de amanhã, ou se as galinhas dos criadouros sabem o que vai lhes acontecer depois que engordarem… De qualquer modo, a capacidade de imaginar o futuro é uma propriedade cognitiva importante dos seres humanos, capaz de lhes propiciar a construção da civilização tal como a conhecemos atualmente. Para o bem ou para o mal…

SUGESTÕES PARA LEITURA
D. Hassabis e colaboradores (2007) Patients with hippocampal cannot imagine new experiences. Proceedings of the National Academy of Sciences, USA, vol. 104: pp.1726-1731.
K.K. Szpunar e colaboradores (2007) Neural substrates of envisioning the future. Proceedings of the National Academy of Sciences, USA, vol. 104: pp.642-647.
D.L. Schacter e colaboradores (2007) Remembering the past to imagine the future: The prospective brain. Nature Reviews. Neuroscience, vol. 8: pp. 657-661.
T. Suddendorf e M.C. Corballis (2007) The evolution of foresight: What is mental time travel and is it unique to humans? Behavioral and Brain Sciences vol. 30: pp. 299-351.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
04/03/2008