Vida além da morte

Lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp , tela de 1632 do pintor holandês Rembrandt van Rijn (1606-1669).

A morte é algo que mais cedo ou mais tarde alcançará a todos, inclusive você, caro leitor. Apesar de evitarmos falar sobre esse tema, ela é parte do nosso ciclo vital e o corpo humano é tão fascinante depois de nosso óbito quanto durante a própria vida.

Pode parecer estranho, mas a vida e a morte são conceitos de certa forma arbitrários que têm mudado no decorrer da história da medicina. Atualmente, considera-se que a interrupção da respiração espontânea e do fluxo sangüíneo são fatores que predispõem ao óbito, pois a carência de nutrientes e de oxigênio irá levar as células rapidamente à morte.

Entre nossos órgãos, o cérebro é o mais sensível e, assim, é o primeiro a sofrer os efeitos dessa insuficiência. Após um curto período sem esses elementos, o cérebro pode sofrer danos irreversíveis ou mesmo uma falência total – algo que se denomina morte encefálica.

Esse conceito de morte encefálica foi proposto em 1968 por uma equipe médica da Universidade Harvard (EUA). Por trás dele, está o fato de que, se um indivíduo perder suas funções cerebrais a ponto de se tornar incapaz de respirar e de responder a estímulos dolorosos, será incapaz de manter suas funções fisiológicas básicas e poderá ser considerado morto.

Embora um cadáver pareça algo estático, uma série de processos ocorre com nossos restos mortais à medida que a falência definitiva nos alcança. Contudo, tratamos normalmente a morte como se fosse algo instantâneo, como se cruzássemos uma linha divisória. Porém, as coisas não são bem assim: diversos eventos ocorrem após termos o nosso óbito diagnosticado. Vários órgãos, como o fígado ou os rins, por exemplo, continuam desempenhando suas funções e grande número de células ainda se dividem normalmente.

Estudos com cadáveres têm indicado que existem células vivas horas e mesmo vários dias após a morte oficial de um indivíduo. Células-tronco cerebrais viáveis podem ser encontradas uma semana após o óbito. Essas células podem ser retiradas e utilizadas em estudos e terapias contra várias enfermidades como o mal de Parkinson, Huntington, Alzheimer e escleroses múltiplas. Além disso, células vivas provenientes de cadáveres de pacientes portadores dessas doenças podem ser também empregadas em estudos que visem compreender as características dessas patologias.

Transplante de órgãos
Mais concretamente, a medicina moderna tem empregado órgãos e tecidos provenientes de pessoas cuja morte encefálica já tenha sido diagnosticada para salvar a vida de um incontável número de pacientes que apresentem lesões ou disfunções nessas estruturas.

Olho humano uma semana após um transplante de córnea (foto: David Robinson).

Diversos órgãos e tecidos como rins, fígado, coração e córneas são retirados para esse propósito logo após o diagnóstico do óbito dos doadores e permanecem viáveis e ativos durante vários anos nos indivíduos que os recebem. Contudo, a preservação dessas estruturas após sua retirada e o transporte para o local em que irá ocorrer o transplante é ainda pouco eficiente e causa, muitas vezes, a perda dos órgãos doados.

Os transplantes estão limitados, portanto, além da compatibilidade entre doador-receptor, pela capacidade da medicina atual de preservar a viabilidade dos órgãos doados durante períodos maiores de tempo. Essa preservação baseia-se no uso soluções químicas preservativas mantidas em gelo. Os rins podem se manter viáveis até 36 horas após a constatação da morte; já outros órgãos, como o coração, têm que ser transplantados mais rapidamente.

Se fosse desenvolvido um composto capaz de conservar esses órgãos durante alguns dias, certamente seria resolvido esse problema, minimizando a longa e dolorosa espera na fila dos transplantes. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, existem no país cerca de 60 mil pacientes à espera de um transplante. No entanto, são realizados por ano apenas cerca de 5 mil desses procedimentos.

Apesar do método de criopreservação ser empregado mundialmente em todos os laboratórios que trabalham com biologia celular e microbiologia e de se mostrar eficiente para a manutenção de amostras celulares e de microrganismos durante anos, ele não é adequado para a manutenção de tecidos e órgãos. Fragmentos de tecido e órgãos criopreservados por períodos prolongados podem sofrer um processo de desidratação que leva à destruição da estrutura celular e à conseqüente morte das células devido aos cristais de gelo formados.

A solução para esse dilema pode vir de um local surpreendente: de estudos sobre a biologia de algumas espécies de rãs que são capazes de, utilizando estratégias fisiológicas e comportamentais, sobreviver aos rigores do inverno nas regiões árticas da América do Norte.

Resistência ao congelamento
Anfíbios são incapazes de manter uma temperatura corporal constante, ao contrário das aves e dos mamíferos, e sua atividade metabólica é ajustada conforme a temperatura do ambiente em que vivem (ectotermia). Por isso, a diversidade desse grupo concentra-se principalmente em regiões tropicais como o Brasil e a Colômbia, os campeões da diversidade dos anfíbios.

A rã da espécie Lithobates sylvaticus é capaz de tolerar o congelamento de até 70% de seus fluidos corporais (foto: USGS).

Uma das espécies encontradas em regiões gélidas, conhecida como rã-da-madeira ( Lithobates sylvaticus ), é capaz de resistir ao congelamento causado por temperaturas tão baixas quanto -8ºC enquanto permanecem hibernando em tocas sob a neve. Como essas rãs são muito sensíveis à desidratação, elas selecionam locais que permanecem úmidos durante todo o inverno. Contudo, o congelamento dos tecidos desses anfíbios ocorre quando a sua pele está em contato direto com água a temperaturas abaixo do ponto de congelamento dos líquidos corporais (cerca de -0,5ºC).

A Lithobates sylvaticus pode tolerar um congelamento de até 70% dos seus fluidos corporais. Contudo, esse processo ocorre apenas no meio extracelular e não no interior das células. A formação dessa camada interna de gelo, porém, resulta em uma concentração dos solutos extracelulares que acabam por drenar a água do interior celular, algo que poderia ser fatal.

Mecanismos fisiológicos, entretanto, entram em ação para minimizar os efeitos danosos desse congelamento. Essa estratégia de sobrevivência é possível devido à existência de dois anticongelantes naturais presentes no sangue desses anfíbios. Esses compostos são muito mais simples do que se poderia supor: trata-se da familiar glicose e do glicerol. Essas substâncias são produzidas e distribuídas pelo corpo do animal para protegê-lo do congelamento e para impedir problemas fisiológicos.

A glicose parece diminuir a desidratação celular e a quantidade de gelo no meio extracelular. Porém, essa capacidade de crioproteção não é tão eficiente para células humanas que não possuem a mesma capacidade de transportar glicose. Portanto, ela parece não representar por enquanto uma solução viável para a preservação de órgãos.

Apesar dessas descobertas recentes, parece que um longo caminho ainda tem de ser percorrido antes de se compreender os mecanismos de tolerância ao congelamento dessas espécies de rãs do Hemisfério Norte. Outras espécies de anfíbios que vivem no mesmo ambiente não se mostram tão tolerantes ao congelamento quanto a Lithobates sylvaticus . A Lithobates pipiens , por exemplo, não apresenta essa mesma capacidade e mesmo a adição de glicose ou de glicerol não é capaz de aumentar sua resistência ao frio.

A compreensão da biologia dessas espécies de anfíbios pode auxiliar no desenvolvimento de técnicas mais eficazes para a preservação de órgãos e tecidos doados para transplante e representar a solução futura para a série de desafios da medicina moderna. Dessa forma, poderíamos estender por vários anos a nossa vida, mesmo que seja no corpo de outra pessoa.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
03/08/2007

SUGESTÕES PARA LEITURA
Costanzo JP et al. Survival mechanisms of vertebrate ectotherms at subfreezing temperatures: applications in cryomedicine. Faseb J. 1995 Mar; 9(5):351-8.
Ramlov H. Aspects of natural cold tolerance in ectothermic animals. Hum Reprod. 2000 Dec; 15 Suppl 5:26-46.
Storey KB. Living in the cold: freeze-induced gene responses in freeze-tolerant vertebrates. Clin Exp Pharmacol Physiol. 1999 Jan; 26(1):57-63.
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